Qualidades que nos faltam - Ricardo B. de Oliveira

A expressão qualidades que nos faltam  foi apresentada por Kardec, no texto Profissão de fé espírita raciocinada, publicado no livro Obras póstumas, e convida a uma reflexão sobre o estágio intelecto-moral em que nos encontramos, e o que nos compete desenvolver daqui para diante.

O conceito de evolução como progresso, desenvolvimento, aprimoramento intelecto-moral, consiste no eixo central do pensamento espírita e difere do conceito de evolução das Ciências biológicas, embora este conceito seja, igualmente, o eixo central da Biologia.

As Ciências da vida reconhecem a evolução como mudança ou transformação no conjunto de genes e nos traços físicos ou psíquicos de um indivíduo, mas nunca como progresso. Essas mudanças permitem que o indivíduo melhor se adapte a sua realidade, mas sem um indicativo de que as coisas estejam avançando do menos para o mais ou do pior para o melhor.

Esse pensamento pode ser entendido se examinarmos alguns fatos.

Primeiro, muitas espécies se adaptaram melhor ao meio, “perdendo” características que nos parecem “nobres” ou “complexas”, como a visão. Alguns peixes que vivem em águas profundas, evoluíram perdendo os olhos! Isso foi, para eles, muito proveitoso, pois muito lhes custaria, em termos enérgicos, manter um órgão tão sofisticado, como os olhos, em uma região onde não chega a luz solar.

Segundo, como pensar-se em evolução como progresso, quando o destino da Terra é o aniquilamento total. Tudo indica que, em alguns bilhões de anos, a energia gerada pelo Sol vai esgotar-se, e toda a vida que depende dele vai se extinguir. Essa extinção será definitiva, embora muitas outras extinções parciais já tenham se dado no passado.

Ao negar a evolução como progresso, a Biologia mostra-se coerente com seus postulados, que examinam a vida apenas em seu contexto material. A proposta espírita, todavia, é muito mais ampla. Ao contemplar a vida também em seu aspecto espiritual, mostra que a evolução representa progresso porque contempla o princípio inteligente – uma consciência não física - que se elabora paulatinamente, saindo do simples para o complexo, através de experiências em corpos cada vez mais elaborados.          

Desperta-nos a curiosidade o fato de Allan Kardec se valer do termo inteligência para qualificar o ser espiritual. Em uma análise superficial, poderia nos parecer inadequada, ou pelo menos incompleta essa qualificação, afinal a inteligência, como habitualmente a entendemos é apenas um dos atributos do Espírito, ao lado de muitos outros: a afetividade, a memória, a vontade, as inclinações etc. Não seria mais apropriado o termo consciência e, consequentemente, a expressão princípio consciencial? Afinal, consciência apresenta-se como um conceito bem mais expandido do que inteligência. A consciência abarcaria, de maneira melhor, todos os atributos do Espírito, incluindo a inteligência.

Em verdade, ao aplicar ao ser espiritual o qualitativo de princípio inteligente, Kardec se antecipou em um século e meio às modernas considerações da Psicologia cognitiva. Os bons livros de Psicologia têm apresentado algumas definições de inteligência que vão ao encontro de tudo aquilo que identificamos no Espírito. Vejamos algumas dessas definições.

a) A inteligência é a capacidade de aprender com a experiência.

Observamos nesse conceito o próprio retrato do Espírito: a capacidade de aprender pelas experiências. Qual o sentido das existências corpóreas, patrocinadas pela reencarnação? Viver experiências diferentes para aprender. Formigas aprendem em laboratórios a achar caminhos corretos em labirintos complicados, abelhas aprendem qual cor é associada à água adocicada em pratos de cores diferentes, polvos aprendem a coletar restos para construir casas, chimpanzés aprendem a linguagem dos sinais.

b) A inteligência é a capacidade de resolver problemas.

Parece ser o que nós mais fazemos: resolver problemas. Foi através de problemas resolvidos que vencemos uma infinidade de dificuldades que sempre atormentaram o homem, aliviando a dor, aumentando o bem estar e expandindo a expectativa de vida. Resolvendo problemas expandimos as capacidades da alma.

c) A inteligência é a habilidade de adaptar-se ao meio onde está inserido.       

A plasticidade e a maleabilidade são capacidades determinantes do Espírito, e graças a elas nos tornarmos a espécie mais bem sucedida do planeta, altamente social, que habita quase todos os ecossistemas da terra.

d) A inteligência é a habilidade em criar coisas uteis a sua comunidade.

Foi por criar coisas úteis à comunidade que o Espírito gerou a cultura, possibilitando o aprimoramento da criatividade humana.

Portanto, notável e plenamente justificável a expressão princípio inteligente, que segundo Kardec, conforme se lê no artigo previamente citado, foi gerado com três marcas de nascença: a simplicidade, a ignorância e a perfectibilidade:

a) Simplicidade

Talvez, Kardec tenha sofrido certa influência de Herbert Spencer, pensador inglês de sua geração que acreditava que tudo no universo evoluí do simples para o complexo.

Podemos entender simples como algo homogêneo, constituído de poucas partes, que interagem umas com as outras sem sofisticação, sem muitas possibilidades. Diferente de algo complexo, ou seja, heterogêneo, formado de muitos elementos diferentes, que podem interagir entre si com certa sofisticação.

Uma comparação grosseira: um carrinho de mão seria algo simples, porque relativamente constituído de poucas peças e um automóvel seria algo complexo, pois formado de mais de dez mil peças diferentes.

b) Ignorância

No pensamento kardequiano, ignorância evoca a ideia de algo sem história, sem conhecimento, sem vivência prévia, que está começando.

c) Perfectibilidade

Jean Jaques Rousseau, pensador genebrino do século XVIII, se valeu do termo perfectibilidade, para caracterizar a faculdade humana de aperfeiçoamento paulatino.  Para Rousseau, a perfectibilidade não deve ser entendida como o poder de se tornar perfeito, pois a perfeição é exclusividade de Deus, mas como o poder de se desenvolver progressivamente.

Esse pensamento está presente na proposta kardequiana: o princípio inteligente “nasceu” com um projeto inato de ser mais, com a aptidão para tudo adquirir e tudo conhecer com o tempo. Perfectível porque dotado da potencialidade de expandir progressivamente as faculdades intelectuais e morais.

Voltando uma última vez ao texto Profissão de fé espírita raciocinada, encontramos o pensamento do codificador:

O aperfeiçoamento do Espírito, é fruto do seu próprio esforço; ele avança na razão da sua boa vontade em adquirir as qualidades que lhe faltam.

Que qualidades são essas - as que nos faltam?

Penso que só o próprio indivíduo está habilitado a escrever a lista pessoal das qualidades que lhe faltam. Só ele mesmo, após longo e metódico exercício de autorreflexão, é capaz de verificar o que já conseguiu e o que lhe falta ainda adquirir.

Belo e necessário exercício esse; cada um de nós examinarmos sinceramente as qualidades que nos faltam e desenvolvermos um programa, o mais prático possível, no sentido de desenvolvê-las.



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