Ao sabor do tempo - Guaraci Silveira

As árvores estavam muito agitadas. Presumia-se que uma chuva torrencial desabaria em breve. Antonina, menina de dez anos, corria pelas trilhas daquele lugar pressentindo o que poderia ocorrer. Seus pais já começavam a se preocupar com ela. Antonina estudava na escola da vila e se dedicava bastante ao que fazia. Já sabia ler e escrever muito bem, contudo, sua predileção era pela matemática e demais assuntos das ciências exatas. Aquilo não era peculiar entre as meninas da época. Quase todas se preparavam para o casamento, menos Antonina que buscava nos livros do avô a inspiração para sua queda nas construções de estradas e edifícios, coisa que seu avô fazia com maestria.

A chuva caiu bem forte e molhou um pouco os cabelos lisos e sedosos daquela criança. Sua vontade era de bailar com os pingos da chuva. Lembrou-se, porém, que no mês passado estivera com febre e fortes dores na garganta tendo que tomar uma infusão preparada pela velha tia e nada agradável ao paladar. É bom dizer que sua saúde sempre inspirava muitos cuidados. Assim, correu célere em busca do abrigo doméstico. Após a chuva Antonina resolveu colher algumas frutas no pomar de casa e qual não foi sua surpresa por notar que não estava só. Havia um menino um pouco mais velho que ela e que também parecia colher frutas.

– Ei, nunca o vi aqui. Como você se chama?

– Marcondes. Respondeu o menino

– Como ousa penetrar assim na residência alheia?

– Não vou pegar nada. Apenas quero observar a beleza das frutas que nascem aqui. Um dia, quem sabe, me mudo para este lugar!

Antonina, preocupada com sua infância, nem percebeu o que disse Marcondes e ficaram face a face e tudo lhes indicava, principalmente à menina, que já se conheciam.

– Interessante, perece que conheço você.

– Talvez nos conheçamos mesmo, disse o menino tirando do bolso um lenço bordado passando-o suavemente nos lábios de Antonina, limpando um pequeno fragmento da fruta escolhida por ela e que ali ficou pelo susto de saber que não estava só.

O leitor ou leitora pode estar pensando que naquele exato momento iniciava um romance promissor entre aquelas duas almas num reencontro feliz. Contudo não era assim. Aquelas almas eram velhas conhecidas de um passado tumultuado onde não se alinharam muito, embora a necessidade premente para ambas. Antonina vinha de uma estrela localizada no hemisfério sul do Universo enquanto que Marcondes vinha de uma estrela que ficava bem ao sudeste. Estranho falar assim. É que o homem terreno não se cansa de residir em seu pequeno planeta julgando-o único, na imensidade cósmica, com possibilidades de abrigar almas. Pensam, ainda, que o confinamento planetário é sua segurança, pois teme que alienígenas armados com raios destruidores irão invadi-lo causando mortes e destruições. Os que por aqui passaram, desde remota idade, só vieram para formatar civilizações ou educar sentinelas da Terra que educam seus moradores. Assunto reservado ao futuro, mas que já pode ser pensado desde agora.

Marcondes e Antonina não se deram muito bem num momento vivido na Mesopotâmia ao tempo do Império Babilônico. A princesa Nescar havia prometido sua mão ao bastardo e infiel vagabundo de nome Korgel, mas que era de beleza ímpar. Korgel vinha de uma tribo escondida na reentrância de uma mata fechada. Era exímio atirador de arco e flecha e encantava pelo seu talento também na música, dedilhando estranho instrumento de cordas e cantando feito um pássaro perdido em pleno voo. Nescar o viu e se apaixonou no alto dos seus doze anos. Korgel queria mesmo era rodar o mundo, queria conhecer o mundo que o acolheu após algazarras sem fim no lugar cósmico de onde veio. Nescar queria fisgá-lo de forma que nunca saísse de perto dela. Ah esses fios da evolução que ainda não se primam pelo puro amor!

Outras meninas moças também queriam Korgel, mas eram simples filhas da Terra sem as experiências da sedução. A mesma que tirou Nescar do seu mundo de origem. Korgel acabou se unindo a Nescar numa cerimônia suntuosa que abalou as estruturas daquele Império. Foi tudo fachada. Tão logo se passou a festança e os noivos se conheceram intimamente, Korgel fugiu sorrateiro em meio a uma noite de lua cheia deixando Nescar que já tinha em si a semente de Abdônio que nasceria a seguir.

Essa história de migração das almas de um planeta para o outro será tema de estudos e pesquisas nalgum futuro e analisada com muito rigor. No passado pensava-se que todas elas eram deuses e deusas que vinham dos céus em regime de comunhão sublime com a Terra. Oh, ledo engano! Muitas traziam em si o histórico abismal das maldades ou das rebeldias sem fim e outras o fogo da sensualidade que queima como se queima na lenda do inferno e que obscurecem almas.

Passado muito tempo, Korgel retornou ao antigo Império, agora destruído e não viu Nescar e nada sabia de Abdônio. Morreu como mendigo sem nada para deixar e seu corpo virou repasto das aves de rapina. Nescar perambulou feito andorinha sem verão, terminando seus dias como mulher de taberna. Abdônio morreu de tuberculose aos quinze anos. Eram almas em desalinho com a realidade sublime da vida. Existem histórias e mais histórias aonde as almas vão se deparando e se acertando até se tornarem anjos alados. Mas, não foi isso o que aconteceu com Nescar e Korgel. Cada um seguiu rumos diferentes buscando encontros vazios ou torpes enquanto os milênios passavam. Com certeza que no passar das estações do tempo aquelas almas se encontraram e desencontraram muitas vezes bailando feitas mariposas perto e longe da luz. E agora, de novo, estavam frente a frente.

Marcondes olhou aquela menina e sabia quem era e o intrépido passado que juntos viveram. A menina olhou Marcondes e percebeu que algo havia acontecido entre ambos. Porém, não podiam permanecer juntos por enquanto. Marcondes estava no Mundo Espiritual e Antonina habitava o Mundo Físico. Existem momentos que chegam e que passam trazendo histórias mal contadas que não se resolvem mesmo com o rolar dos milênios e as almas ficam presas umas às outras, unidas por grossos cordões que impedem os afetos de cumprirem seu papel de sublimar consciências.

Ao longo do tempo, o Espírito, agora com o nome de Antonina, voltou a se prostituir e Marcondes voltou a iludir almas, tudo igual nos seus mundos de origem. O exílio em um planeta pode não ser suficiente para o equilíbrio entre as almas e a Justiça Divina. Portanto, nestes tempos de transição é bom saber disso. Oito mil anos se passaram e somente agora Antonina pensa em algo sério e Marcondes se prepara para renascer seu filho porque Abdônio, outro exilado daquele tempo, já habita esferas elevadas. Eis o trâmite. Eis a verdade que não ilude jamais a ninguém. (*)
 

(*) Este conto foi mediunicamente inspirado ao autor, Guaraci de Lima Silveira, que reside em Juiz de Fora, MG.



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1 Comentários

  1. Guaraci, Essa história me parece tão conhecida. Gostei muito. Parabéns ??????