Religião - Rogério Coelho

“(...) A religião viverá entre as criaturas, instruindo e  consolando,   como  um  sublime  legado.    Ela  é  o  sentimento divino que prende o homem ao Criador”. - Emmanuel


Segundo Adelaide Coutinho , enquanto nos demoramos no mundo, nem sempre sabemos aproveitar a riqueza da fé. Supomos que a religião é uma ideia que deve permanecer escravizada aos nossos caprichos e exigências, esperando que as suas forças representativas gravitem ao sabor de nossos desejos...

Mas, que é afinal “religião”?  Por que até mesmo algumas criaturas que se dizem espíritas “torcem o nariz” para esta palavra, e até se reúnem em congressos para realçar o aspecto filosófico-científico do Espiritismo em detrimento do aspecto religioso?!...

Para Casimiro Cunha , “Religião é caminho/ De sublime comunhão/ Que o Céu abre a cada dia,/ À marcha do coração”.

No momento em que o movimento espírita vai se embrenhando por deltas confinantes, criando segmentos doutrinários estanques por categorias, torna-se necessário ficarmos alertas, pois o “Consolador” veio – democraticamente para todos e deve ser integralmente conservado em seu tríplice aspecto: “Ciência, Filosofia e Religião”.

Não existem cismas nos campos da Filosofia e Ciência espiritistas.  Já o mesmo não se dá com o aspecto religioso do Espiritismo, que, aliás, é o mais importante de todos, uma vez que este nos liga aos Mananciais Divinos, enquanto a Ciência e a Filosofia se arrastam pelo chão da Terra.

Façamos com o confrade Cristian Macedo uma retrospectiva histórica nos domínios etimológicos da palavra “religião”:

“(...) Gerando desentendimentos e transtornos da área da fé e da construção intelecto-moral da criatura humana, a interpretação errônea da palavra “religião” caminha de há muito com os pseudointelectuais. Alguns a têm na conta de superstição, enquanto outros a veem como um conjunto de ornamentos e parafernálias exteriores; muitos a percebem como elemento alienante, de teor opiáceo, visando uma integração subserviente, por parte de seus profitentes, em sistema social materialista e explorador. E devido a esses olhares ingênuos das proposições religiosas, grande parte dos livre-pensadores nega quaisquer relações entre os seus labores científicos e a religião.

É óbvio, porém, que neste contexto de aversão permeia o sentimento de repulsa às atitudes equivocadas dos que, por largos anos, afirmaram-se religiosos e, por isso se achavam detentores de privilégios diante do transcendente.

Manchadas pela ortodoxia que engessa e pela intolerância perturbadora, mentes soberanas que dirigiam o andamento do ideal cristão trabalharam em prol da ignorância dos seus adeptos, para que estes, mais facilmente, pudessem abraçar o dogmatismo bitolador, ínsito em suas propostas clericais.  

Não obstante os erros dos que se arvoraram defensores das verdades religiosas, não se pode confundir aqueles que obstaculizam a luz com a própria “luminosidade”. O religioso não é a religião. É-nos imperioso, portanto, ao nos propormos tecer comentários acerca da religião, transmitir dados etimológicos que auxiliem no aclaramento do significado essencial desse termo.

É certo que a palavra “religião”, originária do latim “religio”, expressava em termos clássicos da antiguidade, ideias como “escrúpulo” e “lealdade”.  Entanto, resta-nos saber a origem do próprio termo “religio”, cuja caminhada etimológica foi objeto de pesquisa de grandiosas personagens na história do pensamento humano, tais como:

Cícero, por volta dos anos 40 a.C., em sua criteriosa obra “De Natura Deorum”, define aqueles que zelavam pelas “releituras” escrupulosas dos cultos aos deuses como “relegeres”.   Sob esse olhar acreditava o notável filósofo pagão que a gênese do termo “religio” ligava-se a “relegere”, isto é, a um posicionamento exterior de rigorismo diante dos mecanismos que, conforme julgavam os antigos romanos, dava ensejo a relações com o sagrado.

Lactâncio, o eminente pensador cristão do século III de nossa era, no entanto, rejeita a leitura de Cícero, apresentando às consciências da época a percepção de um significado espiritual: “religio” é proveniente do vocábulo “religare”.   Em seu livro “Divinae Institutiones”, assevera: “ao construirmos um laço de piedade, nos religaremos a Deus”.

Santo Agostinho, no século IV, estabelece o texto intitulado “De Vera Religione”, que o étimo de “religio” encontra-se, verdadeiramente, em “religare”.  Ele propõe que o homem empreenda uma caminhada espiritual em direção a Deus, num processo transcendente que aclara ainda mais quanto à atividade precípua da religião: religar a criatura ao Criador.

São Tomás de Aquino, passados oito séculos, em sua magistral “Suma Teológica”, reafirma o termo “religare”, discorrendo sobre a necessidade de uma condição íntima reta, para que a finalidade religiosa seja efetivada.

Aprofundando as reflexões que a filosofia lhe facultava, e utilizando-se da incomparável influência intelectual de que era portador, brinda a cultura cristã posterior com este mavioso legado que, em verdade, é alicerce conceitual para a construção da religião transcendente e espiritualizada do porvir.

A palavra “religião”, levando-se em linha de conta os dados supramencionados, possui duas possíveis origens, ambas permeadas por ideologias intimamente antagônicas: por um viés, apresenta-se como ritualística pagã; por outro, mostra-se como atitude moral-cristã.

Ao tratar-se de Espiritismo não há como negar sua essencialidade religiosa, visto que sua proposta se ajusta ao conceito “religião” compreendido e compreensível no âmago do próprio Cristianismo. Afirma-se como Doutrina de caráter religador que visa esclarecer a criatura humana, incentivando seu crescimento rumo à emancipação, em comunhão sincera com o Criador.

Afirma Kardec que a efetiva e global compreensão do Espiritismo tem como efeito para o ser, “desenvolver o sentimento religioso” promovendo um maior entendimento do papel que exerce no Universo.

Estruturada através de metodologia científica, a proposta espiritista tem como elemento preponderante a razão, que se desliga do materialismo para andar “pari passu” com a fé, oferecendo sustentação para o homem religioso da Nova Era e fortalecendo uma nova Cristandade, livre dos dogmas castradores, de atavios e de discórdias perturbadoras da paz social.

A Doutrina Consoladora tem como arquétipo Jesus Cristo, e dá sua contribuição para o projeto divino de aperfeiçoamento das criaturas, instrumentalizando o homem para suas reflexões e ações cotidianas, facultando-lhe a tomada real de sua completa liberdade.

Dessa forma, entendemos que o Espiritismo sinaliza a religação, promovendo a dinamização da humanidade cristã por excelência, livre de vícios, de ranços, e da intolerância, construindo um mundo novo, repleto de ternura e ação fraterna”.

Herculano Pires afirma que “o Espiritismo surge como instrumento teórico-prático e, portanto, estético, do reajustamento necessário. Não somente a sua elaboração, mas a sua própria compreensão pelos homens dependia da evolução espiritual da humanidade. E a prova aí está, bem clara, na incompreensão da natureza tríplice do Espiritismo, revelada não somente pelos seus adversários, mas também por muitos dos seus adeptos, inclusive os intelectuais.  

O primeiro passo a darmos, portanto, na compreensão da Doutrina Espírita, após o estudo histórico dos seus antecedentes e da sua elaboração, é no sentido dessa visão global, que no-la apresenta como doutrina tríplice: Ciência, Filosofia e Religião”.

Emmanuel aduz : “(...) podemos tomar o Espiritismo, simbolizado como um triângulo de forças espirituais: a Ciência e a Filosofia vinculam à Terra essa figura simbólica, porém, a Religião é o ângulo divino que a liga ao Céu.  No seu aspecto científico e filosófico, a Doutrina será sempre um campo nobre de investigações humanas, como outros movimentos coletivos, de natureza intelectual, que visam o aperfeiçoamento da humanidade.  No aspecto religioso, todavia, repousa a sua grandeza divina, por constituir a restauração do Evangelho de Jesus, estabelecendo a renovação definitiva do homem, para a grandeza do seu imenso futuro espiritual”.

Antiguidade Religiosa – Burnolf, em seu livro “A Ciência das religiões”, e Max Müller, em seus “ensaios sobre a história das religiões”, demonstraram de modo incontestável, que o mais antigo monumento religioso conhecido são os livros védicos, e o primeiro daqueles autores acrescenta: “esse monumento firma-se em tradições e escritos, cujas raízes se apoiam na mais remota antiguidade” .

Alinhemos, a seguir, extratos de conceitos sobre religião, expendidos por figuras ilustres, que pinçamos do artigo do confrade Sérgio Mancini, publicado no mês de março de 2000 na “Revista Internacional do Espiritismo”:

Gustave Geley: “estamos perto de uma síntese religiosa revolucionária, apartada de tudo que se relaciona com os domínios das religiões existentes. O novo conceito de religião será ao mesmo tempo profundo e claro, incluindo em seu conteúdo tudo que conhecemos da lei cósmica, oferecendo uma resposta lúcida e sadia ao espírito humano acerca de todos os fenômenos conhecidos e ainda desconhecidos do Universo.                                                                           

Albert Einstein: “saber o que nos é impenetrável realmente existe e se manifesta, através da mais elevada sabedoria, da mais resplandecente beleza – sabedoria e beleza que nossas débeis faculdades só podem alcançar em sua forma primitiva -, este conhecimento, este sentimento, está no centro da verdadeira religião”.

Mohandas Karachan Gandhi: “a vida sem religião é uma vida sem princípio; é como um barco à matroca...  A religião, não possui rótulos e tampouco nacionalidade: é universal. 

Camille Flammarion: “a religião, a crença em um Deus infinito impõe-se a toda entidade que pensa.   Seria possível estudar o problema da morte sem tocar nas crenças religiosas?   Não!  Isso é impossível, desde que tal problema é o próprio fundamento da religião”.

Rollo May: “a religião é construtiva quando fortalece na pessoa o seu senso de dignidade e valor, ajuda-a a confiar no uso e desenvolvimento de sua consciência ética, liberdade e responsabilidade pessoal”.

Arnold Toynbee: “a Ciência e a tecnologia podem criar um vácuo religioso ao levar ao descrédito as religiões anteriormente aceitas, mas não podem preencher esse vácuo.  Isto só poderá ser feito por um outro tipo de religião.  Não creio que algum ser humano tenha vivido ou possa viver sem religião”.

Joseph Banks Rhine: “a religião poderá salvar o mundo se puder captar e manter a liderança no conhecimento do lugar do homem como ser espiritual que é, pleno de forças espirituais.   Quando o homem sentir necessidade  da religião como algo indispensável à sua caminhada evolutiva, trabalhará com todas as suas forças e não se entregará mais – inerme – à fé simples e crédula, e muito menos se submeterá à falível autoridade de outros homens que se dizem representantes de Deus na Terra, compreendendo, finalmente, que cada um deverá desenvolver em si mesmo os potenciais emancipadores”.

Humberto Mariotti: “com a evolução do pensamento humano, a Filosofia Espírita vem adquirindo um posto cada vez mais concorde com sua finalidade:  espiritualizar a consciência humana por meio da Ciência, da Filosofia e da Religião”.

Deolindo Amorim: “como afirmou Allan Kardec, o Espiritismo é uma Doutrina Filosófica de efeitos religiosos. Se as consequências do Espiritismo levam o homem à convicção da existência de Deus, e se esta convicção decorre de um procedimento ético tanto quanto possível conformado às Leis Divinas, porque informado pela compreensão da vida futura e do primado espiritual, é claro que existe uma preocupação religiosa no corpo da Doutrina”.

Herculano Pires: “as religiões são formas de reintegração do homem nas leis naturais, instituições sociais em que se condensam as intuições espirituais que indicam ao homem o caminho de volta a Deus; são sistemas pedagógicos, destinados à reeducação das coletividades transviadas.   A Lei de Adoração, lei natural, será o fundamento da religião assistemática, que o homem do futuro instituirá na Terra”.

André Moreil : “o aspecto religioso do Espiritismo revela ser não uma teoria abstrata, baseada na fé cega e contraditória, mas uma resposta clara, razoável, experimental. 

São Luís (Espírito): “os Espíritos não vêm subverter a religião, como pretendem alguns, mas vêm pelo contrário, confirmá-la, sancioná-la através de provas irrecusáveis. Eis porque dentro de algum tempo tereis mais pessoas sinceramente religiosas do que as tendes hoje”.

Tais os testemunhos que selecionamos para validar nosso posicionamento quanto à fidelidade que devemos a Jesus e a Kardec; tais os assertos que nos levam a concluir acerca da magna importância do aspecto religioso do Espiritismo.

Com a palavra final o inesquecível Herculano Pires : “(...) somente no Espiritismo, no sentido que Kardec deu ao termo por ele criado e posto em circulação, podemos encontrar a unidade doutrinária enfeixada e imbricada no tríplice aspecto do saber, em que a ciência, filosofia e religião, embora mantendo cada qual a sua autonomia, se fundem num todo dinâmico, em que livremente se processa a simbiose, necessária à produção da síntese.

(...) O homem se encontra a si mesmo, no triângulo de forças da concepção espírita:  a pesquisa científica demonstra-lhe o futuro espiritual da vida, rompendo o véu das aparências físicas; a cogitação filosófica desvenda-lhe as perspectivas da vida espiritual em seu processo dialético, através do tempo e do espaço; a fé raciocinada, consciente, da religião em “espírito e verdade” abre-lhe as vias de comunicação com os poderes conscientes que o auxiliam na ascensão evolutiva”.

Mais à frente , retomando o tema, conclui Herculano Pires: “(...) Johann Heinrich Pestalozzi, mestre de Kardec, considerava a existência de três tipos de religião: a animal ou primitiva, a social ou positiva e a espiritual ou moral. Mas, hodiernamente, o conceito de religião espiritual não mais requer a diferenciação que Pestalozzi adotou. No tempo de Kardec ainda era necessário, principalmente numa obra de divulgação como “O Livro dos Espíritos”, evitar a palavra “religião”.  Hoje, a definição filosófica de religião superou as confusões anteriormente reinantes.  O trabalho de Bergson sobre as fontes da moral e da religião colocou a questão em termos claros.  A “religião estática” de Bergson é a “religião social” de Pestalozzi, como a “religião dinâmica” é a religião espiritual.

A prova das razões por que Kardec evitou a palavra “religião”, para definir o Espiritismo, nos é dada pela sua própria confissão no discurso que pronunciou na Sociedade Espírita de Paris, no dia 1.11.1868: “por que então declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Porque só temos uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e porque, na opinião geral, a palavra “religião” é inseparável da palavra “culto”. Revela exclusivamente uma ideia de forma, e o Espiritismo não é isso. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público só veria nele uma nova edição, uma variante, se assim nos quisermos expressar, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma classe sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; o público não o separaria das ideias de misticismo e dos abusos contra os quais sua opinião se tem levantado tantas vezes”.

“Essas palavras de Kardec” – finaliza Herculano Pires – “ao mesmo tempo afirmam a natureza religiosa do Espiritismo, já implícita na própria Codificação, e negam a possibilidade de sua transformação em seita formalista.  

A religião espírita reafirma, assim pelas declarações do próprio Codificador, o seu sentido e a sua natureza espirituais, já evidentes no contexto doutrinário”.



Comentário

0 Comentários