Pesquisa sobre memórias de vidas passadas retoma o trabalho de Hernani Andrade
Natural de Belo Horizonte (MG), onde reside, Eric Vinícius Ávila Pires é médico de Família e Comunidade e mestrando em Saúde pelo Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (NUPES), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFRJ). No Programa de Pós-graduação em Saúde, da mesma Universidade, nosso entrevistado realiza pesquisa que faz parte do Mestrado a que se dedica, utilizando o trabalho realizado pelo Dr. Hernani Guimarães Andrade.
Sobre o assunto ele nos concedeu a seguinte entrevista:
Como surgiu o interesse de pesquisar os trabalhos já publicados pelo Dr. Hernani Guimarães Andrade?
No início do curso de medicina, eu questionei por completo a fé que eu trazia e tive a oportunidade de acompanhar um simpósio sobre a relação entre mente e cérebro, surgindo o interesse de um dia realizar pesquisas que permitissem uma melhor elucidação desse tema que me intrigava desde a adolescência, quando "perdi" duas familiares próximas num mesmo ano. Primeiro, conheci o trabalho inspirador do psiquiatra e pesquisador Ian Stevenson. Fiquei encantado com sua capacidade de estruturar pesquisas que orientassem a metodologia científica para objetos de estudo nada convencionais, equilibrando o rigor científico com a abertura mental para levantar questões consideradas esdrúxulas por grande parte da comunidade científica. Quando decidi investigar alegadas memórias de vidas passadas como proposta de mestrado, pensei na possibilidade de um estudo que retomasse o contato com pessoas que apresentaram as supostas memórias na infância e já tivessem sido investigadas no passado, mas eu desconhecia casos bem investigados no Brasil que seguissem a mesma metodologia de Ian Stevenson e aos quais eu pudesse ter acesso. Conversando com meu orientador, Alexander Moreira-Almeida, ele apresentou a ideia de conhecer melhor as pesquisas do Hernani Guimarães Andrade, ter acesso a esse material e fazer um estudo de seguimento com as pessoas que ele investigou.
A pesquisa está ligada a alguma universidade?
A pesquisa faz parte do meu mestrado no Programa de Pós-graduação em Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), à qual estou vinculado como integrante do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (NUPES).
Basicamente, como é a pesquisa em si, considerando os dados já existentes anteriormente e novo ângulo agora direcionado?
O objetivo da pesquisa é avaliar a qualidade de vida, saúde mental, nível de envolvimento religioso, conteúdo rememorado, percepção de impacto do fenômeno e interpretações das pessoas que na infância alegaram espontaneamente uma suposta memória de vida passada e foram avaliadas há algumas décadas pelo Hernani Guimarães Andrade. Depois que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, descobri que o material do Hernani estava no Museu e Biblioteca Espírita de São Paulo. A instituição gentilmente me permitiu o acesso e deu total apoio para as buscas lá dentro. Após mapear os casos, conhecer os conteúdos e verificar quais deles se enquadravam com os critérios da minha pesquisa, utilizei o nome completo das pessoas investigadas e os nomes de seus familiares para tentar encontrá-las (há casos avaliados pelo Hernani no fim dos anos 1960, nos anos 70, 80, 90 e 2001). As pessoas encontradas vivas e que concordaram em participar da pesquisa foram entrevistadas por meio de um questionário previamente estruturado. Além disso, em média, um familiar de cada pessoa também foi entrevistado, servindo como comparação e incluindo a perspectiva familiar atual nas análises. Os registros prévios do Hernani serão também de grande importância para comparar os relatos presentes com os conteúdos compartilhados na ocasião anterior.
O que mais lhe chamou atenção nesse trabalho iniciado?
As pessoas pesquisadas, em sua maioria, parecem considerar que o fenômeno vivenciado na infância não impactou tanto suas vidas ao longo do tempo. Este é um resultado bem diferente do que acontece com um outro tipo de "fenômeno anômalo", as Experiências de Quase-Morte (EQMs), que geralmente estão associadas a importantes mudanças na vida, as quais se mantêm mesmo após décadas. A maioria dos entrevistados na minha pesquisa já não possui mais as memórias presentes. Eles trazem apenas as recordações do que lhes foi contado sobre o ocorrido, embora com muito menos detalhes e algumas distorções quando comparado às informações coletadas na época em que essas pessoas eram mais novas.
Comente sobre o trabalho específico do Dr. Hernani, já existente.
Encontrei em seus arquivos mais de 30 casos de crianças com alegações espontâneas de memórias de vida passada. Havia, também, aproximadamente outros 50 casos, que contemplavam algum dos seguintes tópicos: pessoas que alegaram memórias enquanto adultas; familiares (ou a própria pessoa) levantaram a hipótese de se tratar de um caso de reencarnação, mas sem as alegadas memórias presentes; investigação que foi interrompida ou que não foi finalizada; ausência da pasta com a investigação do caso no acervo. Eu me debrucei especificamente sobre os casos com supostas memórias espontâneas. Eles eram de diferentes estados do Brasil, das regiões sudeste e nordeste. O Hernani possuía uma equipe de trabalho que o apoiava - em alguns momentos com as entrevistas, em outros momentos na transcrição e no resumo dos conteúdos. Em vários casos, o Hernani trocou correspondências com o Stevenson com o objetivo de receber apoio fora do Brasil para aprofundar as investigações de casos em que, supostamente, as personalidades anteriores teriam vivido fora do país. Ele realizou um trabalho robusto, entrevistando familiares e outras testemunhas diretas que presenciaram as alegações e comportamentos, além das próprias crianças nos casos em que isso foi viável. Em alguns casos, foi possível a ele conduzir entrevistas pouco tempo depois do início das alegações.
Cite para o leitor a sequência e organização de uma pesquisa desse porte.
O primeiro passo é conhecer mais profundamente o assunto. Após isso, vem a construção do projeto de pesquisa, que é estruturado para contemplar objetivos que sejam compatíveis com as lacunas existentes sobre o tema. Em seguida, é solicitada à Instituição que será envolvida na pesquisa uma permissão para essa realização. Depois, tanto o projeto quanto essa permissão e vários outros documentos são enviados para o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Após o CEP analisar o projeto e garantir que qualquer ajuste necessário já foi realizado, é liberado o início da pesquisa. Dentro do projeto, já estava definida toda a metodologia: de onde os casos iriam surgir, quais os critérios para eu incluir ou excluir cada caso e as estratégias que eu iria usar para encontrar as pessoas selecionadas, considerando que elas foram entrevistadas há décadas (e várias quando ainda crianças). Após encontrar essas pessoas e elas toparem participar, elas preencheram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), dizendo que estavam de acordo com a participação, e então foram entrevistadas, assim como algum familiar próximo delas. As entrevistas foram previamente estruturadas com perguntas e questionários específicos, aplicados para todas as pessoas. Por fim, os dados serão analisados e serão escritos artigos para reportar os resultados, bem como a dissertação de mestrado, no meu caso.
Depois de concluído, como é a utilização do conteúdo selecionado e analisado?
O conteúdo deve ser publicado em alguma revista científica de maneira coerente com o tipo de informação gerada. No caso desta pesquisa, será dividido em duas partes: uma parte que será escrita a partir das análises quantitativas, com informações numéricas sobre a investigação; outra parte para falar dos achados qualitativos da pesquisa, em que é trazida a compilação do conteúdo das questões abertas feitas nas entrevistas.
Nos contatos para coleta de informações, nas visitas, como é a reação dos protagonistas? Comente também sobre os desdobramentos das aceitações e recusas nas informações.
Depois do enorme desafio que foi achar as pessoas, o primeiro contato com elas era quase sempre tenso, com muitas suspeitas da parte delas de se tratar de uma fraude ou golpe. Já outros reagiam mal por não quererem retomar tópicos do passado. Eu fui bloqueado no telefone por mais de uma pessoa, tive a ligação desligada abruptamente quando perguntei o motivo de uma pessoa não desejar participar, e houve pessoas que simplesmente pararam de me responder e não atendiam mais as minhas ligações. Houve situação em que o sujeito do caso nem mesmo sabia que havia alegado algo na infância (a pessoa não lembrava, e ninguém havia contado para ela após sua infância). Receber atenção e confiança definitivamente não foi fácil, mas, depois que eram dadas, na maioria das vezes a relação fluía muito bem e as pessoas eram muito gentis e acolhedoras.
Algo mais que gostaria de acrescentar?
O campo de estudo sobre as alegadas memórias de vidas passadas sofreu bastante nas últimas duas décadas após o falecimento de Ian Stevenson. Apesar do surgimento aqui no Brasil de novos pesquisadores investigando esse assunto, o número de pesquisas e publicações sobre o tema está ainda muito tímido e não se expandiu de forma proporcional à maior parte dos outros temas de pesquisa nos últimos anos. Assim, deixo o convite para pessoas que se interessem por realizar pesquisa científica de forma séria: corram atrás de se qualificar para gerar contribuição para a sociedade através da ciência bem feita e, caso esse tema tenha ressonância com alguém, tenha certeza de que o método científico também pode ser aplicado a ele e a tantos outros fenômenos naturais que observamos.
Suas palavras finais.
Eu agradeço a oportunidade deste bate-papo e convido todos a conferirem os resultados da pesquisa daqui a alguns meses. O trabalho de pesquisar e de usar a ciência para expandir o entendimento sobre a vida e o mundo exige aprender a fazer perguntas e compreender as nossas limitações enquanto seres humanos diante da natureza que nos cerca e das respostas repletas de incertezas. Isso exige ser capaz de colocar a reflexão racional acima das crenças arraigadas que um indivíduo traz. É fundamental uma postura de mente aberta atrelada à postura cética para não ser refém nem de um negacionismo sistemático, nem de um comportamento dogmático.
Comentário