Benedicta de Mello

Cega de nascença, foi poetisa de grande talento, além de espírita e esperantista. Iniciou-se na arte de versejar ainda muito criança, ouvindo os repertórios nordestinos, que foram a fonte de sua inspiração. Procurava imitá-los. Inteligência privilegiada, não conhecendo o sistema Braille, era capaz de decorar toda a sua criação.

Benedicta de Mello nasceu na cidade de Vicência, em Pernambuco, no sertão pernambucano, no dia 16 de março de 1900, mas registrada como nascida no Rio de Janeiro em 1905. De numerosa família, seu pai era proprietário de vasta gleba com solo cultivado, que dava para manter a todos, 11 filhos do primeiro matrimônio e nove do segundo, sendo ela a caçula. Francisca Rosa de Mello, sua mãe, ficava com os filhos pequeninos, e não podia trabalhar. Mortos os pais, com a partilha dos bens, sobrou quase nada para cada filho e para ela própria.

Benedicta teve uma vida de sofrimentos até a sua juventude. Sua mãe desejava consultar um médico oculista, que não existia naquele sertão. Levou-a para Recife, confiando-a à família Duarte, que lhe dispensava grande amizade. O Dr. Zeferino Pontual se empenhou para conduzi-la ao Rio de Janeiro, onde teria oportunidade de aprimorar sua educação. Ele admirava sua inteligência, que considerava um fenômeno.

No Rio de Janeiro, foi acolhida no Instituto Benjamin Constant (IBC). Matriculou-se nele em 1920. Ali se graduou no curso ginasial, ingressando no quadro aspirante ao magistério e em 1928 tornou-se professora. Por mais de quarenta anos, exerceu a função de professora do Instituto.

Seus versos são por vezes perpassados de uma serena amargura. Em seu livro Sol nas trevas, ela descreve a vida vista pelo intelecto de um cego. Seu gênero era basicamente o soneto e, graças ao seu talento, ela chegou a ser cogitada para integrar a Academia Brasileira de Letras.

Encantava a todos com seus versos de singular beleza. Dona Maroquinhas Jacobina Rabelo, de grande prestígio na sociedade, presença nas reuniões literárias do país, se transformou em desvelada protetora do Instituto Benjamin Constant. Amiga e admiradora de Benedicta, deslumbrou-se com seu gênio poético e propôs-se a ajudá-la, fazendo publicar suas poesias no seminário Fradique, de grande projeção na época, em Portugal e no Brasil. Em 1935 foi publicado seu primeiro livro em Portugal, e a crítica lhe foi favorável.

Quando o Marechal Mario Travassos fundou a sociedade Pró-livro Espírita em Braille, com Luiz Millecco e Marcus Vinícius Telles, contou com a coleção de Benedicta de Mello e suas companheiras. Ela transcreveu para o Braille: O Catecismo Espírita, O Porquê da Vida e Giovana, de Léon Dennis. Realizou várias conferências em diferentes estados do Brasil, sempre com cobertura da imprensa. Criou a Semana Social dos Cegos. Idealizou um grande órgão para solucionar os problemas mais difíceis, como saúde, educação e justiça. Esse órgão foi substituído pelo Conselho Nacional para o Bem-estar dos Cegos. Fundou também uma casa para moças cegas, a Instituição Hellen Keller.

Deixou vasta bagagem na impressa, e cinco livros publicados: Lanterna Acesa, Sol nas Trevas, Luz de Minha Vida, Lua Interior e Lâmpadas Coloridas. Aos 91 anos de idade D. Benedicta de Mello foi internada com grave enfermidade, em uma clínica na Tijuca, onde ocorreu sua desencarnação no dia 11 de agosto de 1991, com a certeza do dever cumprido.

O QUE ESCREVERAM SOBRE OS LIVROS DE BENEDICTA DE MELLO

Luiz Edmundo (imortal da Academia Brasileira de Letras) ouve de Benedicta de Mello, ao entrevistá-la:

— Vim ao mundo em Vicência, nos cafundós de Pernambuco, um lugarejo pobre, atrasado, esquecido do mundo... E pôs-se a recitar:

"Eu nasci num recanto de palmeira,

Era em meio da selva o meu ranchinho

Pequeno, de sapê, tão pobrezinho

Que pobre me fez sempre a vida inteira."

Em Vicência nasci e me criei, sob a guarda e a ternura de meus pais. Só tarde, muito tarde, pude saber que outros possuíam, neste mundo, mais um, sentido do que eu. Não me impressionei, porém, com essa revelação. Em meio ao mágico esplendor da natureza que me agasalhava, eu me sentia venturosa, ouvindo a voz familiar dos meus, o sonoro cantar dos pássaros, os rumores do vento e até os plácidos gemidos de um pequeno regato, um tênue fio de água, preguiçoso, que atrás da nossa casa, vagaroso, fluía. Entretinha meu pai, por esse tempo, relações de amizade com vários cantadores do lugar. Esses menestréis do sertão enchiam, frequentemente, o nosso rancho, com as suas violas de corda de metal e as suas ingênuas e estouvadas cantorias. Ainda trago fresquinha, na memória, a lembrança dessas tertúlias singulares, que enchiam de sonhos a minha infância.

Esses torneios, em geral gaiatos, muito me divertiam e de modo tal, que, em breve, comecei ousadamente a intrometer-me, lançando, de quando em quando, o meu versinho... Como se está vendo, muito cedo comecei tomando parte nesses recontros improvisados, enfrentando valentes trovadores, deveras convencida e até vaidosa de ver como eles me levavam a sério...

Dos ranchos nossos vizinhos vinham convites. Era a ceguinha insistentemente convidada para tomar parte em desafios. Não me fazia rogada. Aos doze anos, a trovadora sertaneja tinha melhorado bastante. Zé da Taquara, certa vez, num de seus repentes, perguntou qualquer coisa que logo respondi, fazendo, por minha vez uma pergunta. Não me respondeu, como eu queria, o precipitado cantador. Retruquei-lhe, nesta sextilha que ainda hoje guardo num cantinho da memória:

"A resposta direitinha,

O cantador não me deu.

Se ele crê que sabe muito,

Sabe menos do que eu,

Venha depressa, a resposta

De quem não me respondeu...”

A esses versos, de expressão humorística, tão a feição do caboclo da terra, sucederam outros, graves, sérios, que eu já compunha sem ser ao som da viola. Foi num ambiente de sonho e de poesia, que passei as horas mais felizes de minha descuidada meninice. Andava eu perto dos meus treze anos, quando um forasteiro apareceu em nossa casa e nos falou da existência de um educandário que havia na cidade do Rio de Janeiro, onde os cegos, gratuitamente, eram instruídos em todas as disciplinas que se ensinam aos videntes, pelo um método inventado por Braille. Alvoroçou-me enormemente, a extraordinária nova. Assim, pensei eu, poderia ler, escrever e contar, conhecer várias matérias, coisa que eu até então considerava como uma espécie de graça, a nós cegos negada e concedida apenas aos que possuíssem o sentido da vista! Ah! Pensava eu, jubilosa, poder escrever os meus versos e lê-los quando quisesse, sem me valer, para isso, da falível memória de terceiros! Saber tudo, deliciar-me em livros que tudo contam e que os outros nem sempre me contavam!

À minha mãe, pedi que me mandasse para tão famoso educandário do Rio de Janeiro, escola que instruía, sem a menor despesa para os pais, as crianças cegas. Ah! A ânsia que eu tinha de aprender.

— Não pode ser, respondeu-me ela. Se você fosse um homem eu não consentiria, quanto mais sendo cega e mulher!

E vieram as razões: de um lado, os recursos monetários, de outro, a impossibilidade de poder acompanhar-me em tão grande jornada. Para ela, além disso, o Rio de Janeiro era uma cidade de perdição.

— Se uma mulher já feita, acrescentava, naquele báratro infernal, de pecado e de vício, com dificuldade pode defender-se, quanto mais uma inesperta e tímida menina com treze anos apenas e privada da visão. É pôr de lado a ideia que é absurda. Um alvitre somente me restava: fugir de casa, abandonar Vicência, Pernambuco e seguir, sozinha embora, para o Rio de Janeiro. E não é que fugi?

Para alguma coisa havia de servir a popularidade conquistada, em Vicência, pela menina cantadeira. Possuía amigos, ótimos amigos, todos acordes, todos aprovando os meus legítimos projetos. Entre as famílias do lugar, uma, a do Dr. Theodomiro Duarte, foi a que por mim, com a mais viva insistência e a maior das coragens, abertamente se bateu. A ela, devo a guarida que então tive, no dia em que fugi, abandonando a casa. Meu pai havia falecido anos atrás. A família Duarte, ainda sou credora da ajuda que depois tive, na jornada que me levou a capital de Pernambuco, onde fui carinhosamente recebida por uma outra família amiga, que se incumbiu do meu embarque.

Fui, depois, conduzida a bordo do vapor "Brasil'’, um veterano calhambeque que pertenceu ao Lloyd Brasileiro, instável e vagaroso barco que vinha se arrastando de Belém do Pará, em direção ao Rio, onde cheguei ao fim de sete dias. A bordo, no momento de embarcar no Recife, fui posta sob a tutela de uma D. Edésia, que ocupava uma cabine de primeira classe. Vinha eu, com um bilhete de terceira. Na hora do desembarque, essa mesma senhora, que, durante toda a travessia, me cercara de cuidados e mimos, eclipsou-se de repente e desapareceu.

Valeu-me nesse contratempo, o socorro amistoso de uma camareira de bordo, que me conduziu à residência do Dr. Zeferino Pontual, velho conhecido da família Duarte, cujo endereço eu trazia guardado, cuidadosamente na memória. Não o achamos, porém, pois ele havia mudado de residência. De vizinhos, não sem dificuldades, obtivemos indicação de sua nova morada — ruma pensão na Rua do Senado. Para lá me guiaram. Achei-o, felizmente.

Imagine-se, agora, o espanto do Dr. Pontual, ante a presença da menina cega que há anos não via e que ali se apresentava, inesperadamente, a pedir, a implorar que ele a conduzisse à escola que acolhia os cegos pobres do Brasil, para que nela fosse, sem demora, internada!

A surpresa talvez não fosse muito agradável! Abraçou-me, porém, sorrindo e prometeu cuidar do que eu, com tanto ardor, pedia. Apenas não estava em condições, disse, de agasalhar-me em sua residência. Conduziu-me a casa de uns amigos seus, no bairro de Botafogo, onde eu deveria ficar até que se aplainassem certas dificuldades que certamente surgiriam, para o meu internamento. E foram elas enormes, porque, além de ser menor, eu não poderia apresentar nem um só dos documentos exigidos pelo educandário. Findaram-se, afinal, os embaraços que dificultavam a minha entrada no Instituto, esse abençoado educandário onde me instruí, me eduquei e me fiz professora.

Em 1938 casei. Quanto às influencias que decidiram de minha formação como escritora, posso dizer que a noção rigorosa do ritmo, bem como a contagem métrica do verso, eu as aprendi ouvindo os cantadores do sertão. Não sou levada a crer que deles pudesse receber ponderáveis influxos. Estes vieram depois, com o conhecimento de poetas como Gonçalves Dias, Castro Alves, Casimiro de Abreu e acima de tudo, os que formaram a geração de Bilac: Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, para não citar outros.  Os meus primeiros versos foram publicados em Portugal, sem ter jamais, por lá, posto os meus pés. Sucedeu que uma grande amiga, Maroquinhas Jacobina Rabelo, em viagem pela Europa, passou por Lisboa, onde Thomás Ribeiro Colaço então dirigia uma revista literária — "O Fradique". Minha amiga mostrou-lhe os meus versos e Colaço, que sempre demonstrou grande amor ao Brasil, dedicou uma página inteira de seu mensário à poetisa cega, transcrevendo os seus versos e desdobrando-se em louvores que muito a sensibilizaram.

Naturalmente, a notícia havia de ecoar entre nós. As palavras de Colaço foram aqui transcritas, bem como minhas pálidas estrofes... Devo, ainda, a Maroquinhas Rabelo, a impressão do livro com o qual me apresentei a crítica do meu país. Publiquei, em seguida, SOL NAS TREVAS, graças à ajuda de outra grande amiga, Helena Ferraz, filha de Bastos Tigre, que seguindo as gloriosas pegadas do pai, e ativa colaboradora de diversos jornais, entre os quais o "Correio da Manhã", sob pseudônimo de Álvaro Armando. Helena apresentou-me a Agripino Grieco que prefaciou meu livro.

Aqui terminou a entrevista, mas não a obra de Benedicta, que prosseguiu escrevendo e com este conta seu quinto livro de poesias, além de uma coletânea de versos patrióticos.

Sobre seu primeiro livro: LANTERNA ACESA, publicado em 1935 e reeditado em 1977, Thomaz Ribeiro Colaço, editor português diz: "...uma revelação sensacional para as letras portuguesas e para as letras brasileiras, esses formosíssimos sonetos, ainda inéditos.

Com a revelação de um grande nome de mulher que sofre e sabe contar o seu tormento, de mulher que chora e sabe converter em beleza as suas lágrimas, continua este jornal a cumprir sua missão. Na limpidez maravilhosa de seus ritmos, a força conceptiva e criadora de B. de M., põe em relevo sua grande riqueza de imaginação poética.

LANTERNA ACESA é uma estrela que Deus acendeu em sua alma."

SOL NAS TREVAS — dado a lume em 1944, mereceu, entre muitas palavras elogiosas dos críticos, uma página de Roger Bastide, em "Don Casmurro" de 11 de agosto.

A poetisa pernambucana, às vezes se deixa levar pela linguagem dos clarividentes, como "O Algodoeiro", que é um lindo jogo de imagens, um jogo sobre cores, ou ainda em certos versos como este:

"Em tarde cor-de-rosa e sob um céu de anil..."

LUZ DE MINHA VIDA — editado em 1955, teve sua segunda edição em 1982, acrescida de um prefácio. Como os livros que o precederam, foi carinhosamente acolhido pela crítica. Eis um trecho do artigo publicado em Recife, pelo crítico Flósculo Corrêa Lima:

"Sempre julguei os cegos pessoas à margem dos acontecimentos. Jamais acreditei que a luz espiritual, desses seres condenados à masmorra da escuridão eterna, fosse tão extraordinária, a tal ponto que chegasse a ofuscar a luz dos que carregam abertos os olhos para a vida.

Vede bem, amigos, esses versos são clarinadas lúcidas de luz, são "recuerdos" e baladas próprias para sonhar em noites de lua cheia, quando o mar prateado é um mundo infinito de felicidade.

Gostaria de transcrever todo o conteúdo do livro, para que não somente eu, mas todos vós que admirais as musas e os trovadores, sentísseis o que eu senti, ao penetrar nesse mundo encantado que é o livro LUZ DE MINHA VIDA da poetisa Benedicta de Mello."

LUZ INTERIOR — publicado em 1972, acrescido de um capítulo constituído pelos vinte e dois sonetos patrióticos que integravam a coletânea "Versos do meu Brasil", logo esgotada.

Acolhido com muito agrado por críticos e leitores, mereceu de Carlos Drummond de Andrade, palavras de carinho como as que se seguem:

"Luz Interior" — o belo título de um belo livro. Poesia em que emoção e realização verbal se unificam para a serena fruição do leitor".

Apresentamos agora LÂMPADAS COLORIDAS*, cuja leitura certamente trará aquele sabor de pureza e de sinceridade que impregna toda a obra de Benedicta de Mello.

Como todo o artista, B.M. é sensível ao mundo que a rodeia e sofre agora ao ver os caminhos que a humanidade vai trilhando. Sua obra reflete essa transição.

FONTES:

http://www.visionvox.com.br/biblioteca/b/Benedicta_de_Mello_L%C3%A2mpadas_Coloridas.txt

Revista Brasileira para Cegos - Ano LXXIII, n.o 538, Julho/setembro de 2015



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