A rotina

A natural transformação social, decorrente dos efeitos da ciência aliada à tecnologia a partir do século 19, impôs que o individualismo competitivo pós-renascentista cedesse lugar ao coletivismo industrial e comunitário da atualidade.

A cisão decorrente do pensamento cartesiano, na dicoto­mia do corpo e da alma, ensejou uma radical mudança nos hábitos da sociedade, dando surgimento a uma série de con­flitos que irrompem na personalidade humana e conduzem a alienações perturbadoras.

Antes, os tabus e as superstições geravam comportamen­tos extravagantes, e a falsa moral mascarava os erros que se tornavam fatores de desagregação da personalidade, a servi­ço da hipocrisia refinada.

A mudança de hábitos, no entanto, se liberou o homem de algumas fobias e mecanismos de evasão perniciosos, im­pôs outros padrões comportamentais de massificação, nos quais surgem novos ídolos e mitos devoradores, que respon­dem por equivalentes fenômenos de desequilíbrio.

Houve troca de conduta, mas não de renovação saudável na forma de encarar-se a vida e de vivê-la. De um lado, a ciência em constante progresso, não se fa­zendo acompanhar por um correspondente desenvolvimento ético-espiritual, candidata-se a conduzir o homem ao  niilis­mo, ao conceito de aniquilamento.

Noutro sentido, o contubérnio subjacente apresenta um elenco exasperador de áreas conflitantes nas guerras e ame­aças de guerras que se sucedem, nas variações da economia, nos volumosos bolsões de miséria de vária ordem, empur­rando o homem para a ansiedade, a insegurança, a suspeição contumaz, a violência.

A fim de fugir à luta desigual — o homem contra a máqui­na — os mecanismos responsáveis pela segurança emocional levam o indivíduo, que não se encoraja ao competitivismo doentio, à acomodação, igualmente enferma, como forma de sobrevivência no báratro em que se encontra, receando ser vencido, esmagado ou consumido pela massa crescente ou pelo desespero avassalador.

Estabelece algumas poucas metas, que conquista com re­lativa facilidade, passando a uma existência rotineira e neu­rotizante, que culmina por matar-lhe o entusiasmo de viver, os estímulos para enfrentar desafios novos.

Rotina é como ferrugem na engrenagem de preciosa ma­quinaria, que a corrói e arrebenta.

Disfarçada como segurança, emperra o carro do progres­so social e automatiza a mente, que cede o campo do raciocí­nio ao mesmismo cansador, deprimente.

O homem repete a ação de ontem com igual intensidade hoje; trabalha no mesmo labor e recompõe idênticos passos; mantém as mesmas desinteressantes conversações: retorna ao lar ou busca os repetidos espairecimentos: bar, clube, tele­visão, jornal, sexo, com frenético receio da solidão, até al­cançar a aposentadoria..

Nesse ínterim, realiza férias progra­madas, visita lugares que o desagradam, porém reúne-se a outros grupos igualmente tediosos e, quando chega ao denominado período do gozo-repouso, deixa-se arrastar pela inu­tilidade agradável, vitimado por problemas cardíacos, que resultam das pressões largamente sustentadas ou por neuro­ses que a monotonia engendra.

O homem é um mamífero biossocial, construído para experiências e iniciativas constantes, renovadoras. A sua vida é resultado de bilhões de anos de transforma­ções celulares, sob o comando do Espírito, que elaborou equi­pamentos orgânicos e psíquicos para as respostas evolutivas que a futura perfeição lhe exige.

O trabalho constitui-lhe estímulo aos valores que lhe dor­mem latentes, aguardando despertamento, ampliação, desdo­bramento.

Deixando que esse potencial permaneça inativo por indo­lência ou rotina, a frustração emocional entorpece os sentimentos do ser ou leva-o à violência, ao crime, como processo de libertação da masmorra que ele mesmo construiu, nela encarcerando-se.

Subitamente, qual correnteza contida que arrebenta a bar­ragem, rompe os limites do habitual e dá vazão aos conflitos, aos instintos agressivos, tombando em processos alucinados de desequilíbrios e choque.

Nesse sentido, os suportes morais e espirituais contribu­em para a mudança da rotina, abrindo espaços mentais e emo­cionais para o idealismo do amor ao próximo, da solidarieda­de, dos serviços de enobrecimento humano.

O homem se deve renovar incessantemente, alterando para melhor os hábitos e atividades, motivando-se para o aprimo­ramento íntimo, com conseqüente movimentação das forças que fomentam o progresso pessoal e comunitário, a benefí­cio da sociedade em geral.

Face a esse esforço e empenho, o homem interior sobrepõe-se ao exterior, social, trabalhado pelos atavismos das re­pressões e castrações, propondo conceitos mais dignos de convivência humana, em consonância com as ambições es­pirituais que lhe passam a comandar as disposições íntimas.

O excesso de tecnologia, que aparentemente resolveria os problemas humanos, engendrou novos dramas e conflitos comportamentais, na rotina degradante, que necessitam ser reexaminados para posterior correção.

O individualismo, que deu ênfase ao enganoso conceito do homem de ferro e da mulher boneca, objeto de luxo e de inutilidade, cedeu lugar ao coletivismo consumista, sem iden­tidade, em que os valores obedecem a novos padrões de críti­ca e de aceitação para os triunfos imediatos sob os altos pre­ços da destruição do indivíduo como pessoa racional e livre.

A liberdade custa um alto preço e deve ser conquistada na grande luta que se trava no cotidiano.

Liberdade de ser e atuar, de ter respeitados os seus valo­res e opções de discernir e aplicar, considerando, naturalmente, os códigos éticos e sociais, sem a submissão acomodada e indiferente aos padrões de conveniência dos grupos domi­nantes.

A escala de interesses, apequenando o homem, brinda-o com prêmios que foram estabelecidos pelo sistema desuma­no, sem participação do indivíduo como célula viva e pen­sante do conjunto geral.

Como profilaxia e terapêutica eficaz, existem os desafios propostos por Jesus, que são de grande utilidade, induzindo a criatura a dar passos mais largos e audaciosos do que aqueles que levam na direção dos breves objetivos da existência ape­nas material.

A desenvoltura das propostas evangélicas facilita a rup­tura da rotina, dando saudável dinâmica para uma vida inte­gral em favor do homem-espírito eterno e não apenas da má­quina humana pensante a caminho do túmulo, da dissolução, do esquecimento.


Do livro O Homem Integral, Primeira Parte, cap. 2, obra de Joanna de Ângelis, psicografada pelo médium Divaldo Franco.



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