Zenóbio de Miranda Pinto

Filho de usineiros de açúcar, Zenóbio de Miranda Pinto nasceu em Campos, Estado do Rio de Janeiro, onde viveu até os 12 anos de idade, quando decidiu mudar-se. Passando por Niterói, acabou chegando ao Rio de Janeiro. Sem recursos financeiros, fez pequenos trabalhos em troca de alimento e abrigo. Nessa fase, chegou à Praça XV para, logo depois, ajeitar-se como auxiliar de um português que detinha um comércio varejista abastecido por tropeiros.

Observando no local de descarga, decidiu-se a auxiliar no transbordo da carga. Os tropeiros imaginaram tratar-se de um auxiliar do comerciante. O português, por sua vez, acreditou que ele era um dos prepostos da tropa. Ao final, foi convidado, pelo espírito de serviço, a integrar o grupo de auxiliares no comércio, o que lhe trouxe momentâneo alívio.

Num dia de descanso decidiu ir à estação da antiga Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB) para ver o movimento do mais usual meio de transporte de passageiros da época. Lá, afeiçoou-se a um dos conferentes da ferrovia, depois de encantar-se com as comunicações em código morse. Valorizado, o conferente interessou-se pelo jovem e forneceu-lhe informações do uso da telegrafia, passando a Zenóbio uma cópia do alfabeto morse. No domingo seguinte, lá estava ele na ferrovia, de novo. Tinha memorizado o alfabeto morse e, naquele momento, experimentava o manipulador de transmissão de sinais, bem como a leitura da fita que vertia com a comunicação reversa. O conferente tinha o teatro como hobby e convidou o novo amigo para enturmar-se, tendo este entrado como coadjuvante e logo se transformado em opção como ator. Ali, viria a ter contato com o Grêmio Literário Recreativo Leopoldo Machado e o ideário do Consolador. Conhecera o próprio Leopoldo Machado, a quem coube fazer chegar-lhe às mãos as obras da Codificação, que ele lera como se tudo já conhecesse. Com apoio do conferente e estímulo do comerciante português que muito o admirava, ingressou na EFCB como extranumerário, trabalhando apenas quando faltava algum dos titulares. Logo se firmaria e, com isso, teria início a tarefa do bandeirante da Doutrina dos Espíritos. Depois de trabalhar em várias estações da ferrovia, acabou indo para Minas Gerais, onde grandes frentes de trabalho o aguardavam. Morou em Itabirito, oportunidade em que conheceu Iara, operária de uma fábrica de tecidos, a alma valorosa que haveria de impulsioná-lo de encontro aos tempos novos que estavam por vir. Consorciou-se com ela, surgindo dali filhos que dariam a ele redobradas alegrias e estímulo para a caminhada. Desafiou a crença dominante, declarando-se espírita e recusando-se a adotar as práticas religiosas tradicionais. Naquela cidade, nasceria seu primogênito, de nome Ismael.

Logo depois, foi transferido para Conselheiro Lafaiete, onde surgiu o segundo da prole, Adolpho. Algum tempo após, foi transferido para Mantiqueira - estação próxima a Santos Dumont - surgindo lá mais um dos membros da família: Expedito. Na sequência, foi parar em um Sítio, onde nasceu aquele que teria o seu nome: Zenóbio. Ali, participou dos primórdios das reuniões espíritas da localidade, na residência do também militante espírita, Henrique Zonzin, recebendo a visita periódica de outros confrades de Barbacena, como Zezinho Abrantes, um dos fundadores do Centro Espírita Caminheiros do Além, que funcionou na antiga praça Conde de Prados - popularmente conhecida como Jardim do Globo.  Promovido a agente de estação, foi então transferido para Carandaí, onde viria a completar o grupo familiar com o nascimento de Allan Kardec e Moarê.  Conta-se que, naquela cidade, àquela época, havia poucas autoridades no município: o Prefeito Municipal, o Delegado de Polícia, o Padre e o Chefe da Estação da Estrada de Ferro. Vivia-se o final da segunda metade dos anos 30 e início dos anos 40. Em Carandaí, Zenóbio de Miranda mostraria todo o seu potencial de realização empreendedora e capacidade pessoal de vencer desafios. Sem receios da hostilidade e da repulsa que se expressavam naquela época pela presença do novo, transformar-se-ia num bandeirante do Consolador. Das reuniões em sua residência e nos lares de confrades que aderiram à sua liderança carismática, agregou pelo exemplo, pela clareza do raciocínio e pela determinação pessoal um contingente grande de adeptos e simpatizantes. Instituiu as reuniões de estudo e aquelas destinadas ao intercâmbio espiritual. Deu início à evangelização de crianças e adultos, e logo viria a obter um terreno em doação para construir uma Casa Espírita. Era o desafio máximo. Acreditava na proteção dos amigos espirituais e tinha a certeza de que o acaso não existe. Conta-se que, de imediato, agiu na busca do colimado objetivo. Com um grupo de amigos da primeira hora foi feita a primeira prece no local onde se construiria o Centro Espírita Novo Oriente, primeira casa do Espiritismo local. Cidade de clima frio e de abundante pluviosidade, no horário previsto para aquele momento solene, começa a cair em Carandaí uma chuva fina, semelhante a uma garoa, que provoca nos presentes um momento de desconforto e contrariedade. De bom ânimo imbatível, Zenóbio ergue as mãos e diz, abrindo o encontro público em meio a flores silvestres e arbustos de pequeno porte: “Meus irmãos! É o orvalho Divino que cai sobre as nossas cabeças! Agradeçamos a Deus por esse encontro maravilhoso.”

Dali pra frente ninguém mais se sentiu incomodado e, ao final, não mais se lembrava de quando a garoa cessara, nem por quanto tempo caíra sobre o grupo.  Protagonista de momentos inesquecíveis da Doutrina, sempre foi um homem de jeito sereno, de aspecto esguio e altivo, sério, de princípios ilibados. Sorria sempre, mas de forma discreta. Não contava anedotas nem estimulava conversações menos edificantes. Mudou-se de Carandaí para Santos Dumont, onde teve militância espírita ostensiva. Ao aposentar-se, foi para o Rio de Janeiro onde já morava a maioria dos seus filhos, permanecendo ali até o seu desencarne.

ZENÓBIO E A PRESENÇA DOS ESPÍRITOS

O relógio marca 19h30. Dona Iara alerta a marido:

- “Zenóbio, acabei de fazer a matula para sua viagem desta madrugada. Podemos sair agora mais sossegados para a reunião.”

A passos rápidos dirigem-se à residência do confrade Russo, que, à semelhança das vezes anteriores, apresenta grande movimento. Prece inicial. Leitura e comentário de um trecho de O Evangelho segundo o Espiritismo. Logo após, a segunda parte, o intercâmbio com o Mundo Espiritual através da mediunidade de alguns confrades. Nesse instante, D. Iara reflete que não havia colocado sobre a mesa dos trabalhos a papeleta com o nome do marido que, dentro de algumas horas, tomaria o Noturno originário de Belo Horizonte, em direção ao Rio de Janeiro.

- “Não tem importância” - pensou. “Esta questão de colocar papéis sobre a mesa é relativa. O que importa é a força do nosso pensamento. Pedirei, mentalmente, com fé, em favor do Zenóbio, a fim de que ele faça boa viagem.” Mal terminara a prece e o espírito Irmão José, através da médium Maria Russo, fala com voz firme e pausada: - “Há neste recinto uma senhora que acaba de pedir proteção para o marido. Quero dizer a ela que o aconselhe a não realizar a viagem que pretende. Que retarde sua saída desta cidade. Dona Iara comenta o fato discretamente com o marido ao lado, mas este não se deixa convencer. - “Com certeza” - diz ele – “a advertência não é para mim. Deve haver outra pessoa que também vai viajar.” - “Não senhor!” – esclarece, novamente, a Entidade espiritual, dirigindo-se a Zenóbio. “O recado é para o senhor mesmo.”

Depois de palavras tão incisivas, não havia mais o que retrucar. Dona Iara estava satisfeita pela orientação recebida, mas, ao mesmo tempo, um tanto contrafeita.  Porque, afinal - como era hábito na época - tinha passado algum tempo a preparar a bolsa de Zenóbio. O jeito era, então, ir para casa. Tomou, assim, seu café em companhia do esposo e foi repousar, ainda com a mente tumultuada com o acontecimento da noite.

No dia seguinte, ao clarear, o filho do casal, Adolpho, levanta-se, dirigindo-se para a estação ferroviária, onde costumava carregar embrulhos dos passageiros, ganhando, desta forma, alguns trocados.

Todos estão ainda em casa, quando ele chega, sobremodo nervoso, para comunicar:

- “Papai, o trem que o senhor ia tomar foi vitimado num engarrafamento. Envolveu-se num violento desastre!  Falaram lá na estação que há muita gente morta e ferida.”

O pai vai até lá, onde já se acotovelam dezenas de pessoas, a tecerem comentários sobre o triste acontecimento.

O Noturno (N-2), que descia da Capital mineira para o Rio, chocara-se com um cargueiro (C-65), que subia a Mantiqueira. O desastre verificara-se no quilômetro 355, entre as estações de João Aires e Sítio. Os comboios deveriam cruzar-se em João Aires. Consoante notícias espalhadas, o maquinista do cargueiro, que deveria esperar no desvio a passagem do noturno, encontrara no arco de aviso uma papeleta de licença, ali deixada pelo maquinista de outro cargueiro, por esquecimento, e, julgando ser a licença para o comboio que conduzia, retirou-a do arco e, sem ler, porque lia com dificuldade, conforme depois declarou, prosseguiu a marcha. Daí o encontro dos trens.

Naquela data, 19 de dezembro de 1938, o Diário Mercantil estampava em suas páginas uma grande manchete: “O maior desastre ferroviário no Brasil, nos últimos tempos”, noticiando, logo depois, que 53 pessoas haviam morrido, enquanto que 60 estavam gravemente feridas, a maior parte internada em hospitais de Barbacena.  No meio do tumulto que se formara na estação de Carandaí, Zenóbio recorda, angustiado, a figura de um amigo vendedor de bilhetes na cidade.

- “Senhor Zenóbio,” - dissera-lhe o cambista no dia anterior ao desastre – “estou muito contente. Imagine que não consegui vender ontem todos os pedacinhos e, exatamente um que ficou encalhado, foi sorteado. Já conferi o resultado. Amanhã, segunda-feira, seguirei pelo Noturno a fim de tomar algumas providências em Juiz de Fora.”

Essa conversa Zenóbio recorda naquela manhã triste.  À tarde, debaixo ainda de forte emoção, percebe a aproximação do cambista que lhe bate no ombro e, sem que o amigo se refaça da surpresa, conta-lhe o que se passara. Tomara o trem em Carandaí, de madrugada. Após algum tempo de percurso, resolvera ir ao banheiro. Ao voltar, ainda de longe, com o Noturno lotado, percebera que uma irmã de caridade acomodara-se em sua poltrona.  Acanhado, não tentou reaver o lugar, ficando junto ao banheiro, de pé. Foi quando ocorreu o acidente. O lugar em que estava assentada a religiosa ficara completamente destruído. Se ele estivesse em sua poltrona, não teria escapado.

Zenóbio ouve o amigo, estarrecido, e pergunta:

- “E a irmã de caridade? Já localizaram o corpo?”

O cambista continua a explicar, agora com voz a tremer:

- “Durante muitas horas, eu e outras pessoas tentamos localizá-la. Não a encontramos. Comentei o fato com os passageiros que estavam no mesmo carro. Todos eles afirmaram com absoluta certeza: ‘Não havia nenhuma irmã de caridade no vagão!’ ...”


Fontes:

- HALFELD, Revista “Reformador”, abril/1987, FEB;

- “O Espírita Mineiro”, nº. 281 (setembro/outubro – 2004).



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