Sois deuses - Maria Duarte

“Conhece-te a ti mesmo”, assim ensinava Sócrates (470 A.C.-399 D.C.). Alguns séculos depois, Jesus afirmava “Vós sois deuses” (João 10:34) e ainda “Conhecereis a verdade e ela vos libertará” (João 8:32). No século XIX, a uma pergunta de Kardec sobre a necessidade da reencarnação, os Espíritos respondem, “Todos são criados simples e ignorantes e se instruem através das lutas e tribulações da vida corporal (…)”.

Vale a pena atentarmos nestas afirmações que, se bem entendidas, têm grandes implicações no modo como encaramos a nossa própria essência e nos dispomos a crescer aos mais diversos níveis: espiritual, emocional, moral, social, intelectual.

Somos obra divina. O Pai, em sua imensa sabedoria e misericórdia, desde sempre tem estado em criação constante. Cada um de nós é uma das suas obras. Não fomos criados perfeitos, sábios, moralizados. Não fomos criados nem bons nem maus. Isso contraria a crença de alguns de que Deus nos criou bons e, em contacto com a Terra, degeneramos. Uma espécie de anjos caídos. Essa ideia contraria absolutamente o princípio de que Deus, para ser Deus, tem de ter bondade, misericórdia, sabedoria, presciência… e todas as outras perfeições que lhe conhecemos e as que nem imaginamos, todas elas no grau mais absoluto, sob pena de que um outro as poderia vir a ter em maior grau. Com que finalidade criaria Deus seres perfeitos e os colocaria em situações que os fariam andar para trás, perdendo tudo o que lhes tinha dado no momento da criação? Onde estaria a perfeição da obra divina? Podemos até questionar: Onde estaria a perfeição do Criador?

Pelo contrário, a ideia de que somos uma obra original, simples, ignorante, com todo as potencialidades para evoluir, crescer de forma quase ilimitada, chegar, como fruto do nosso trabalho incessante, à perfeição que nos é dado necessário alcançar, essa sim, parece-nos uma ideia que nada repugna à razão.

Mas, apesar de simples e ignorantes, não partimos do zero absoluto no momento em que fomos criados. Somos como a pequena semente que muito pouco se parece com a árvore que lhe deu vida, mas traz em si tudo o que precisa para vir a ser uma árvore portentosa, cheia de vida e vigor. Cada pequena semente, de acordo com a espécie de que provém, tem em si os germes daquilo que virá a ser, quando chegar a hora da germinação, e crescer até se transformar numa obra perfeita de acordo com a sua natureza, se lhe for permitido desenvolver-se envolta nas condições que lhe são necessárias.

Nós somos a semente do anjo em que nos tornaremos. Temos em nós os germes da sabedoria, da bondade, do belo, do bom, e de todas as virtudes que poderemos desenvolver, ao longo das reencarnações sucessivas em mundos materiais e do que poderemos aprender durante as estadias intermédias na erraticidade. Algumas destas virtudes, por enquanto nem antevemos quais poderão ser. São inerentes a estados evolutivos que ainda não são os nossos, mas dos quais, por vezes, temos tímidos vislumbres, que poderemos considerar como apelos do Alto a chamar-nos para novos rumos, para que não estacionemos numa felicidade enganadora, mas confortável.

Quando Jesus reafirma o que já anteriormente podíamos encontrar no antigo testamento (Salmo 82:6) “Sois deuses”, refere-se às potencialidades da alma que, quando desenvolvidas devidamente, nos farão empreender feitos e conquistas de uma sublimidade que nem suspeitaríamos nos estados menos avançados da escalada evolutiva. Estes feitos e conquistas a que nos referimos não são de cariz material, não são as conquistas da riqueza, nem as conquistas sobre povos. Não são os feitos do heroísmo que nos leva à luta exterior contra pessoas, países, povos. Mas não são feitos menos heroicos, ates pelo contrário. São a conquista do bem e da sabedoria, conseguida nas lutas interiores que empreendemos contra os vícios, as más tendências, os maus instintos, a ignorância, o egoísmo.

Esta luta exige de nós um constante esforço de reflexão que leve ao autoconhecimento. “Conhece-te a ti mesmo”, preconizava Sócrates, esse grande percursor do Cristianismo, logo também do Espiritismo. Ou seja, conhece-te a ti mesmo, reflete sobre as tuas ações, perscruta os teus desejos e pensamentos mais íntimos. Analisa os teus dons, investiga sobre o que te faz verdadeiramente feliz, descobre como dar pequenos passos de cada vez, mas avança. “Vigia as próprias manifestações”, como diz André Luiz, no pequeno, mas profundo, livrinho Conduta Espírita (1960), da psicografia de Waldo Vieira. Usa nisso toda a força da tua vontade. Ela é a alavanca para as subidas mais íngremes e dolorosas. Por mais difícil que nos parece o caminho, uma vontade firme é a força motriz que não nos deixa desistir ou ficar para trás.

Léon Denis, na sua obra O Problema do ser, do destino e da dor (terceira Parte: As potências da alma), incita-nos da seguinte forma:

Almas humanas que percorreis estas páginas, elevai os vossos pensamentos e resoluções à altura das tarefas que vos tocam. As vias para o Infinito abrem-se, semeadas de maravilhas inexauríveis, diante de vós. A qualquer ponto que o voo vos leve, aí vos aguardam objetos de estudo com mananciais inesgotáveis de alegrias e deslumbramentos de luz e beleza. Por toda a parte e sempre, horizontes inimagináveis suceder-se-ão aos horizontes percorridos. (Léon Denis, 1908)

E, mais adiante, no mesmo capítulo da obra, acrescenta: “A inteligência humana não pode descrever os futuros que pressente, as ascensões que antevê (…). A alma, em suas intuições profundas tem a sensação das coisas infinitas, de que ela participa, e às quais aspira (…). Dia virá em que a alma engrandecida dominará o tempo e o espaço.”

Joanna de Ângelis, na sua obra Dias Gloriosos, da mediunidade de Divaldo Franco, alerta-nos também para a necessidade de empreendermos uma busca constante, focando-se no muito que há ainda para conhecer e evoluir quando empreendermos a nossa vontade no bom aproveitamento das potencialidades que estão latentes em nós: “No que diz respeito às questões espirituais, o imenso campo se desdobra, rico de paisagens que aguardam ser conquistadas, não estando ninguém, no mundo, em condições de estabelecer paradigmas e definições últimas, por lhe escaparem possibilidades para tanto (Joanna de Ângelis, 1998).

A mesma autora espiritual, na obra Jesus e o Evangelho, acrescenta:

A crescente luta do Espírito é direcionada para a perfeição relativa que lhe está destinada. Rompendo, a pouco e pouco, as couraças que lhe obstaculizam alcançar a meta, desvestindo-se dos equipamentos grosseiros, que são heranças das experiências iluminativas por cujo trânsito se movimentou, investe os melhores recursos quando alcança o nível de consciência lúcida para fazer brilhar a sua luz (Joanna de Ângelis, 2000).

Somos deuses destinados a grandes coisas. Quanto mais evoluímos, mais antevemos as venturas que nos estão destinadas. Exatamente como quem percorre uma estrada e quanto mais avança nela, mais perto vê a meta e mais se esforça por chegar, empreendendo nisso todos os esforços, superando-se. Também no campo da evolução espiritual, quanto mais subirmos na escala espírita, mais seremos capazes de antever novos horizontes e mais saberemos empreender nisso toda a nossa vontade, porque saberemos usar as potencias da alma. Conhecimento atrai conhecimento. Evolução atrai evolução. Reafirmamos, com Léon Denis, que a vontade é a maior de todas as potências, porque funciona como esse íman que atrai até nós as forças do bem que nos auxiliarão sempre a atingir as metas a que nos propomos no campo espiritual.

Concluímos esta singela reflexão com a tão bela afirmação do Mestre Jesus: O Reino de Deus está dentro de vós” (Lucas 17:20).


Bibliografia:

Novo Testamento: João 10:23; Lucas 17:20
O Problema do ser, do destino e da dor, Léon Denis.
Dias Gloriosos, pelo Espírito Joanna de Ângelis, pela mediunidade de Divaldo Franco.
Jesus e o Evangelho, pelo Espírito Joanna de Ângelis, pela mediunidade de Divaldo Franco.
Conduta Espírita, pelo Espírito André Luiz, pela mediunidade de Waldo Vieira.
Antigo Testamento, Salmos 82:6.



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