Sobre fomes, apetites, desesperos e gulodices - Marcelo Teixeira
Há alguns anos, dois amigos de movimento espírita se casaram. A cerimônia foi no sítio da família do noivo, em uma cidade distante cerca de 100km de Petrópolis (RJ), onde moro. Decidimos fretar um ônibus. Assim, todos os convidados da Cidade Imperial iriam juntos. E chegariam com mais segurança ao local, já que nem todos conhecem a cidade, e o sítio está situado na zona rural. A família da noiva é de Petrópolis; a do noivo, de outra cidade vizinha. E havia também convidados de outras cidades, inclusive da capital.
A cerimônia civil estava marcada para o meio-dia, se não me engano. Em seguida, seria servido um opíparo almoço, já que a família do noivo é proprietária de vários restaurantes. Para que todos chegassem a tempo ao sítio, tiveram de acordar cedo e se produzir como convém à ocasião. E todo mundo tomou café da manhã bem cedo também. Eu, inclusive.
Era um sábado de feriado nacional, não me lembro qual. Casamento em zona rural, ou seja, nada de mercados, lanchonetes e afins. E se houvesse, talvez estivessem fechados. Tudo pronto para a cerimônia. Noivo e convidados a postos. Deram 12h, 13h, 13h30 e nada da noiva. Motivo: só havia um cabeleireiro e várias mulheres para serem penteadas. Além da nubente, havia a mãe e a sogra dela, além das madrinhas.
Uma agitação se instalou entre os convidados. Todos haviam tomado café da manhã muito cedo e ninguém conhecia a região para sair em busca de algum lanche. Mesmo porque, não havia nada por perto. E era feriado, ainda por cima. Quem poderia garantir se encontraríamos algo funcionando? A agitação foi se transformando em desespero causado pela fome; e nada da noiva chegar.
Foi quando o pai do noivo mandou improvisar uma tenda, na qual foram colocadas dezenas de pães franceses, além de fatias e mais fatias de queijo prato e presunto. Devem ter vindo de alguma padaria da região. Foi um Deus nos acuda! Os convidados, todos devidamente engalanados, maquiados e penteados, se acotovelaram, na disputa por um sanduíche.
Eu e os amigos de movimento espírita apenas observávamos. Aliás, tiro o chapéu para a turma espírita que estava presente. Nenhum de nós, apesar da fome, avançou na tenda. Patrícia, uma amiga, pediu para que eu, de forma civilizada, fosse até lá e fizesse um sanduíche para ela. Aquiesci e me aproximei tranquilamente. À minha frente, uma elegante senhora, entre desesperada e esbaforida, terminava de colocar várias fatias de queijo e presunto no pão. Não me arrisquei a entrar no embate. Preferi aguardar um pouquinho que fosse. Subitamente, só eu fiquei no local. Todos já haviam preparado suas iguarias improvisadas e se afastado. Havia sobrado meia banda de pão francês. Achei curioso como tanta gente faminta havia deixado aquela metade de pão para trás. Será que alguém montou o sanduba só com a outra banda do pão? Vali-me, então, de um guardanapo que também sobrara, peguei aquele pão, levei até Patrícia e disse que era o que havia restado para contar a história. Como ela preferiu não comer meia banda de pão seco, coloquei a iguaria de volta na mesa da tenda. Vai que alguém ainda à cata de uma migalha pudesse se interessar? Felizmente, minutos depois, a noiva chegou, o casamento se concretizou, o almoço foi servido e todo mundo se refestelou.
Confesso a vocês que foi um experimento e tanto ver como a fome faz muita gente descer do salto. E isso num caso de fome momentânea! Fico imaginando como deve ser com quem padece de fome crônica.
É bem interessante notar como a comida que é ofertada causa a mais variada gama de reações. No caso que narrei, tratava-se de uma cerimônia formal. Um enlace matrimonial. Ninguém foi lá para comer, embora soubesse que haveria almoço seguido de mesa de doces, bolo de casamento etc. E de fato foi uma tarde bem farta e variada. Mas como todos os estavam há muitas horas sem comer, os sanduíches improvisados – e nos quais muitos dos presentes não tocariam se fizessem parte do menu oficial – se transformaram num manjar dos deuses a saciar a fome de adultos e crianças solenemente trajados para a ocasião.
Festas de casamento, aliás, são excelentes ensejos para observamos a relação que temos com fartura de comidas e bebidas. Já presenciei cenas que foram do divertido ao patético. Entre elas, casamentos em que os convidados depenaram a mesa de doces logo no início da festa. De nada adiantou as famílias dos noivos pedirem para os convivas deixarem a mesa intacta até o momento das fotos e de cortar o bolo. As trufas, “fondants”, bem-casados e afins foram atacados sem dó nem piedade. E isso com o jantar sendo servido! Creio que a profusão de cores, aromas e sabores faz a turma comer com os olhos. E como o olho é maior que a barriga, lá se vai a mesa de doces para o tombo! E tem a ver com falta de educação também, convenhamos! Tem gente que não pode ver comida bonita, arrumada e em profusão. Às vezes não sobram nem os objetos de decoração que pertencem ao local onde a festa aconteceu. Já ouvi de um cerimonialista que ele teve de cobrar dos noivos por alguns jarros que os convidados levaram para casa. Jarros que eram propriedade da empresa de cerimonial.
Não precisamos, contudo, de um casamento com pompa e circunstância para atestarmos como do egoísmo derivam todos os males que assolam a humanidade, como diz a questão 913 de “O Livro dos Espíritos”, de Allan Kardec. Falarei sobre dois que têm a ver com o assunto em questão.
O primeiro mal é a gulodice, que faz o cidadão pensar só em si na hora de se servir. Certa vez, num restaurante a quilo, uma senhora se deparou com dois pratos à base de camarão. Um deles era chuchu com camarão. Do outro, não me lembro. Eu estava imediatamente atrás dela. A mulher ficou maravilhada e começou a falar para si mesma (e para mim também, creio) que adorava camarão, que era uma iguaria estupenda e coisa e tal. Em seguida, pegou todo o camarão que havia nos dois pratos. O chuchu com camarão virou chuchu com chuchu. O outro prato também ficou desprovido do apreciado fruto do mar. A mim não afetou, e por um motivo bem simples: detesto camarão! Mas os clientes que vinham em seguida a mim decerto gostariam de se servir de tão badalada iguaria. Não puderam porque a lépida senhorinha de classe média sequestrou o camarão só para si.
O outro mal é o parco acesso que boa parte da população tem a uma mesa farta, nutritiva e colorida. Por isso, quando se depara com uma situação de fartura, a gula fala mais alto. Uma gula que pode ser sinônimo de uma fome nunca dantes saciada. E não falo somente sobre barriga vazia, mas sobre barriga que nunca teve acesso a uma alimentação rica e variada. A isso, Maria Luíza, amiga e colega de trabalho por muito tempo, dá o nome de fome tardia.
Marilu, como eu a chamo, teve uma empregada que vivia comendo em excesso. Até de um vinho de baixa qualidade que minha amiga guardava para temperar a carne de vez em quando, a empregada deu cabo. O mesmo destino tiveram algumas garrafinhas de uma bebida que ela comprou porque iria receber um casal de amigos. Quando abriu a geladeira, dos seis exemplares que Maria Luíza havia comprado, só restavam dois. A empregada tomara quatro. E fazia a mesma coisa se Marilu comprasse quindins, cocadas, pastéis, caquis, morangos, quibes, pêssegos... É a fome de quem sempre come mal e, ao se deparar com fartura, engole tudo para compensar a fome por uma despensa cheia e por não saber quando haverá ensejo de comer bem novamente.
Na mesma questão 913 de “O Livro dos Espíritos”, Kardec ressalta que o egoísmo é incompatível com a justiça, o amor e a caridade. Já na questão 875-a, é dito que a base dessas três virtudes é querermos para os outros o mesmo que queremos para nós mesmos. Aí, cabe a pergunta: por que nem sempre queremos para os outros a qualidade do que queremos para nós mesmos? Isso me faz lembrar um então prefeito brasileiro, que sugeriu dar ração como merenda escolar. Acharíamos justo se nossos filhos comessem ração humana na hora do recreio? Ou será que pensamos que só nossas crianças têm direito a levar sucos, sanduíches, frutas e bolos na lancheira? Julgamos natural que algumas crianças tenham direito a uma merenda farta enquanto outras comem ração? Se a resposta é positiva, aconselho pesarmos direitinho na balança da nossa consciência o que de fato quer dizer a palavra cristão.
Volto a “O Livro dos Espíritos”. Dessa vez, na questão 803, a primeira do capítulo sobre a lei de igualdade. Kardec indaga se todos os homens são iguais perante Deus. Os amigos espirituais respondem que todos tendem para o mesmo fim, que o sol nasce para todos e que todos são submetidos às mesmas leis da natureza. Em suma, todos têm as mesmas necessidades, alegrias, dores físicas e morais. Tenhamos em mente que a dor da fome, seja ela crônica ou momentânea, é imensurável e, antes de tudo, imoral. Afinal, o mundo tem capacidade de sobra para que todos tenham uma alimentação rica e saudável. Se o sol nasce para todos, há água, terra, ar, além de frutas, legumes, verduras e cereais para todos. O que atrapalha é a proposital má gestão dos bens que o planeta produz a fim de que os poderosos de sempre sejam beneficiados. A isso se dá o nome de egoísmo, a maior de todas as chagas morais que aturdem o homem.
Bibliografia
KARDEC, Allan – O Livro dos Espíritos, 60ª edição, 1986, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.
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