Promessas - Guaraci Silveira

A situação não era nada boa. Os anos passados naquela escuridão do umbral havia-nos tornado perigosos. Sim, o convívio com o medo e as angústias torna-nos pessoas altamente agressivas. Éramos um pequeno grupo que foi resgatado pelas mãos caridosas de alguns enfermeiros que passavam pelo vale da morte. Já estávamos na colônia havia algum tempo, contudo os sentimentos eram os mesmos. Apenas melhorou o ambiente externo, o interno ainda era conturbado, confuso e mau. Sim, éramos pessoas más. Não gostávamos de ninguém. Queríamos que a infelicidade que estávamos vivendo inundasse as vidas de todos.  Era assim, fazer o quê? Melhor ser verdadeiro, foi a falsidade que nos havia colocado naquele lugar.

É muito importante renascer. Costuma ser um refrigério para as almas atormentadas. Muitas vezes pensamos que viver em condições precárias e até de misérias quando estamos encarnados é o fundo do poço. Enganam-se os que pensam assim. A reencarnação sempre traz possibilidades novas e nos retira de verdadeiros antros onde a perdição se alia à loucura e nos tornamos meio homens, meio loucos, meio animais. Então surge a possibilidade de um novo corpo, nova família, nova história a ser vivida e contada. Aparecem anjos vindos dos páramos celestiais e nos acolhem. Sempre são aqueles familiares mais próximos que nos pegam as mãos, nos deitam em seus colos e afagam nossas dores.

Um colega de infortúnio renasceu faz dez anos. Está vivendo com os parcos recursos do pai, aposentado por invalidez. A mãe desapareceu. A irmã mais velha se prostitui para colher mais tarde os frutos das suas invigilâncias. Mal sabe ele que quando chegar aos dezoito reencontrará sua alma querida, parceira de tantas jornadas. Ela virá do interior do país e o tomará pelo amor conduzindo-o a uma vida mais digna, num aposento melhorado, oferecendo-lhe condições de estudar e formar-se e dar novo rumo à sua evolução. Porém, os diretores da colônia temem pela sua lealdade aos deveres assumidos. Poderá ele, de uma hora para outra, ser arrastado pelas facilidades da vida. Existe um colega dele que está furtivamente envolvido com o tráfico de cocaína e precisa de um ajudante. Está pensando seriamente em convidá-lo. Nosso colega é daqueles que, quando quer uma coisa, quer que seja na hora. E sua hora ainda demora um pouco. Fica-nos a expectativa: será que vai conseguir esperar?

Ninguém renasce com a programação do erro. Renascemos colhendo frutos ou cipós, orquídeas ou mandruvás. Você que está renascido tente ser coerente com você e Deus. Faça o seguinte: pergunte-se como estão suas alegrias e tristezas, serenidade e conturbação, propósitos e soluções. A dualidade é necessária até nos firmarmos na Lei Universal. Não se incomode com ela. Faça dela sua aliada. Nem sempre é possível pender a balança da justiça para um só lado.

Um outro caso se refere a Tânia, que renasceu faz quinze anos. Antiga comparsa dos antros umbralinos, foi a conquistadora mais feroz que conheci. Perambulava de caverna em   caverna oferecendo-se como meretriz a troco da proteção dos gigantes que nos inoculam com o ácido da paralisia. Viveu assim, amando o que fazia. Nada a removia dos seus interesses menores. Quando encarnada, foi uma grande desfazedora de lares, seduzindo maridos alheios e desvirginando meninos. Trabalhava como garçonete em importante casa de lanches da cidade. Em todo o tempo atendia de dia e de noite, invertendo posições. Numa servia o prato que alimenta, noutra a luxúria que resseca. Um dia foi resgatada. Penoso resgate. Não fosse o calor abrasador do fogo que purifica, teria continuado escondida no fundo de uma tenebrosa caverna.

– Você é muito importante para Deus, minha filha.

Disse-lhe o pai aos prantos quando tentava levá-la, capengando, pelos lamaçais daquele lugar. Quantas vezes soltava-se de suas mãos e aos risos loucos e desvairados corria para os braços daquelas figuras de monstruosas performances. Tânia os amava com a loucura própria dos embotamentos mentais. Amava-os e os possuía e era um amor dantesco, antecâmara da ovoidização. Tânia conseguiu sair dali, mesmo que a contragosto, muito mais para fugir, por medo dos constantes assaltos, que por decisão própria. Renasceu e é agora jovem promessa de uma família abastada que a quer como sucessora do pai nos negócios empreendidos por eles.

Incrível, mas Tânia está irreconhecível. É aluna atenta, filha exemplar, participante de grupos jovens de estudos do Evangelho de Jesus. Sua beleza, um pouco amortalhada pelas desventuras passadas, vem chamando a atenção de Nestor, filho de um amigo do seu pai. Nestor é inteligente e enérgico jornalista. Tânia tem saído com ele e, embora viva nesta atualidade, retorna cedo para casa e não permite a mínima atenção de desrespeito por parte do seu pretendente. Este cada vez mais a adora e a tem como o símbolo da pureza. Tânia é hoje uma menina imaculada e caminha com desenvoltura pela encarnação como quando se é livre, como quando o passado é de luz e as sombras nem de longe ameaçam.

Outro dia estávamos na sala de estudos com nosso preceptor preferido. Dr. Antunes é homem de rara inteligência e altamente comprometido com a educação. Provavelmente renascerá educador e poderá mudar muitos conceitos arcaicos e até perigosos que se aplicam a espíritos com novas propostas. Estávamos falando de Tânia. 

– Dr. Antunes, eu vivi ao lado da Tânia no umbral por muitos anos e a conheci bem de perto. De um instante para o outro ela mudou. Como é isto? Basta renascer? Perguntei já atento à resposta que receberia.

– Nem sempre, Gustavo. Nem sempre. O ato de reencarnar é assunto pertinente a cada um e Deus. Dizem que quando estamos adentrando o útero materno ouvimos a voz do Criador e Ele nos faz uma proposta única e diferente. Se aceitarmos, tudo pode dar certo.

– Como assim? Deus conversa conosco quando vamos reencarnar?

– Não só quando vamos reencarnar, mas também em todos os dias e horas. Quando vamos reencarnar estamos assumindo o compromisso de uma nova experiência. Sempre deixamos muito a ser cumprido, porém todas as nossas tentativas de acertos são catalogadas pela contabilidade divina. Não fosse isso, dificilmente deixaríamos os pântanos que nos rodeiam por enquanto.

Entendi. Tânia deve ter ouvido a voz de Deus e ter assumido com Ele um pacto. Pensava eu com minha cabeça tonta de tantas perguntas. Quando saímos do umbral sempre temos muitas perguntas a fazer.

– Gustavo, Tânia ainda é uma promessa. Chegará o dia em que terá que rever seus arquivos e resolver seus comportamentos vividos anteriormente.

Numa das minhas encarnações tive uma filha. Angelina era seu nome. Meu Deus, como depositava nela tantas esperanças. Trabalhava como pescador e Angelina seria a gerente da aduaneira que pretendia montar. Aos treze anos já sabia ler e escrever e fazer contas. Primordial para as minhas intenções. Era religiosa, frequentava os cultos semanalmente. Quase cometeu um homicídio quando Arlindo tentou manchar sua honra. Atirou nele uma machadinha que por pouco não deixou exposto o seu cérebro. A partir dali ninguém ousava aproximar-se dela. O tempo foi passando e os meus propósitos se concretizaram. Montamos a aduaneira e Angelina tornou-se severa negociadora de peixes. Um dia, quando acordei, senti falta dela. Procurei-a. Perguntei por ela e acabei por dá-la como morta uma vez que gostava de sair sozinha de barco por aquele mar bravio que nos rodeava. Chorei o choro do pai que sente o corpo casto da filha ser devorado por tubarões. O tempo passou. Noutro dia, bem mais distante, resolvi visitar a capital. Necessitava encontrar uma mulher. Bem, encontrei Angelina num antro umbralino erguido em plena crosta e frequentado por amantes do jogo e dos jogos luxuriosos.  Choramos juntos. Não a culpei, era velho demais para isso. Angelina conheceu Júlio Pimenta, que conhecia Tina Duram. Tina Duram era dona do estabelecimento. Morreu e, claro, Angelina a sucedeu e agora era a dona. Antes comercializava carne de peixes, depois, humanas.

Fiquei sabendo noutro dia que Angelina partiu da pátria espiritual para aquela reencarnação cheia de bons propósitos. Era aluna exemplar do estabelecimento preparatório de renascimentos. Era a grande promessa de todos e falhou. Hoje estamos distantes um do outro. Aqui, chegamos a um ponto que não medimos culpas e sim buscamos meios e formas para os acertos. Sempre temos aulas nos locais em que vamos renascer. Conhecemos ou reconhecemos nossos futuros pais. Andamos pelos locais em que andaremos quando encarnados e, muitas vezes, estagiamos neles sob os olhares atentos dos preceptores.

Está chegando o meu momento. Daqui a pouco entrarei na faixa da reencarnação como dizem por aqui. Deverei cumprir meu próximo papel nas hostes da medicina. Tenho estudado bastante. A medicina dará saltos gigantescos quando for médico e me candidatei para ser um daqueles que vão ajudar a unir a medicina da Terra com a medicina dos céus. Tarefa árdua, sei. Compromisso gigantesco. Aprendi, porém, que todo renascimento é permeado de promessas e de condições. Os nossos superiores nunca nos entregam as tarefas que não podemos realizar.

Digo para você que me lê agora: sua vida foi planejada. Como está se saindo nesta encarnação? É fiel no seu trabalho, no seu casamento ou relacionamento? É bom filho, pai, amigo? É alguém que ajuda a sociedade a crescer, a partir das suas ações? Como se diverte nas horas de folga? Saiba você que todos os nossos momentos geram frutos doces ou amargos. Não deixe o céu esperar. O céu passa rápido. Daqui a pouco o céu que cobre a Terra vai passar e virá outro, radioso, pleno de exuberâncias.

Você ainda pode perguntar-me pelo meu colega renascido ou pela Tânia. Sinceramente não sei como estão. Pode ser que os reencontre quando estiver aí. Pode ser que eles estejam tão próximos de você. Veja na rua se acha meu colega. Se o encontrar, ajude-o a esperar pelos seus dezoitos anos. Se encontrar a Tânia, observe-a de longe, de perto, e seja o anteparo das suas ações. Dizem que nada acontece por acaso. Quem sabe existe uma causa que o levou a ler este conto.

Ah! Se vir um menino andando pelas ruas, daqui a alguns anos, pode ser eu. Cuide também de mim. Um dia você vai ser menino ou menina de novo. Assim se processa a vida, assim desfilamos, assim caminhamos no holograma universal.


(*) Este conto foi mediunicamente inspirado ao autor, Guaraci de Lima Silveira, que reside em Juiz de Fora, MG.



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