Morri de invigilância - Guaraci Silveira

Nos planos espirituais, o que deseja aprender sempre tem alguém para relatar sua história. Um dia encontrei Raya e ela me contou a sua:

Eu morava num lugar muito longe daqui. Estava com quinze anos e adorava andar de skate, bicicleta e amava nadar, sair correndo feito louca pelas ruas, nos jardins, no clube ou onde pudesse. Como sabem, garotas da minha idade, quase sempre usam roupas bem apertadinhas ou mesmo usam muito pouco. Preferem deixar o corpo à mostra para que todos vejam como ele é bonito. Eu tinha um tio, o tio Sandro. Ele vivia me aconselhando:

– Raya, cuidado. Não abuse tanto assim da sua beleza. Um dia ela pode acabar.

– Que é isso, tio. O que é bonito deve ser mostrado!

Eu saí rindo dele de forma meio inocente meio travessa, meio: “não tô nem aí...” e dava de ombros e lá ia eu para outra aventura, agora de patinete motorizada.

As meninas da escola ficavam tomando conta umas das outras para ver quem era a mais careta. Eu, é claro, não queria nunca ser careta. Queria ser bela e poderosa! Queria que os meninos me olhassem e me admirassem. Queria que todo mundo se curvasse ante minha beleza, meus predicados, minhas desenvolturas, minhas artimanhas...

Meus pais pouco se importavam. Tudo que eles queriam era trabalhar e trabalhar, ganhar dinheiro, morar bem, ter um bom carro, comprar roupas bonitas e caras para eles e para mim. E eu bem que sabia exigir isto, afinal eles me deixavam tão sozinha. Acabei ganhando um cartão de crédito com um limite generoso! Eles queriam mesmo era ganhar muito dinheiro para passear e namorar. Como eles namoravam! Namoravam entre si ou não. Bem, isso é coisas deles e não quero me meter. O que quero contar é como eu morri. Como uma menina linda de cabelos dourados e angelicalmente cacheados, como eu pode morrer com menos de dezesseis anos? Como pode ser isto? Mas, um dia daqueles lá estava o meu corpo deitado naquele caixão de menina moça e um montão de gente chorando e assustados com a minha morte. Fiquei desesperada ali. Aquelas pessoas transmitiam para mim as mais diferentes emoções. Tinham aqueles que choravam pensando:

– Que bom, vamos ficar livres dela!

– Ah some menina! E veja se não vem assombrar a gente não, viu?

– É, até que era bonitinha... Dava para o gasto!

– Valeu enquanto era viva. Agora que está morta, bota logo na cova!

Este último pensamento foi do Nandão. O carinha de que eu gostava e que, de vez em quando, a gente ficava! Nossa que decepção... Logo ele!

Mas, ouvi um pensamento legal:

– Pois é, maninha. Agora vai aprender melhor a lidar na vida!

Era o meu irmão Dinar, maduro como o nome. Ele já tinha uns vinte e um e era um exemplo de virtude. Nunca havia namorado mais ninguém a não ser a Cris. Eles se amavam. Acho mesmo que já até se casaram. Meus pais me olhavam com um pouco de receio e, para ser bem sincera, com um pouco de vergonha deles mesmos por não terem cuidado direito de mim. Eu também estava com vergonha. Ainda bem que cobriram bem o meu corpo com muitas flores e ainda me colocaram um vestido grande e um véu que parecia de Nossa Senhora. Ninguém sabe o que é morrer levando segredos e culpas!

Chegou a hora do enterro. Eu estava confusa, atordoada, morrendo de novo e agora, de medo!

– O que vai acontecer comigo quando colocarem este caixão lá na cova? Pensava e me desesperava.

– Dentro dele é que não vou ficar! Afirmava para mim mesma.

– Quero sair daqui!... Alguém me tira daqui!...

Tinha o Vô Lélio. Era calado, mas sabia muito sobre mortes. Tentei falar com ele e gritei bem alto para ele ouvir:

– Vô Lélio, o que eu faço agora? Meu corpo está lá esticado naquele caixão e eu estou aqui vivinha como nunca.

Ele não respondia, apenas continuava de olhos fechados e eu não via espírito nenhum, só mesmo aqueles encarnados brutamontes, doidos para tudo aquilo acabar e eles irem para suas casas. Surpreendeu-me a Guguinha, minha amiga, que estava de olho nas minhas roupas. Éramos da mesma idade e havíamos combinado de quem morresse primeiro deixasse de herança para a outra todas as suas roupas. A danada da menina já se via dentro das minhas...

Foi aí que chegou o padre. Rezou, benzeu pra cá, benzeu pra lá... Falou que eu era uma pessoa boa e que certamente Deus me receberia em Seu Trono. Falou para meus pais ficarem bem tranquilos porque meninas na minha idade são puras e que quando morrem viram anjo etc. etc... Como é possível virar anjo só porque morre? Bem, aquele padre foi quem disse. Só que até ali não havia nascido nenhuma asa em mim.

Na hora certa aqueles coveiros chegaram com uma maca de rodinhas. O povo despediu-se de mim, quer dizer, do meu corpo. Fecharam o caixão aos gritos de dor e de arrependimentos. A alma é sincera nestes momentos. Podem crer. Eu vi quando a maca começou a sair da capela e eu fui ficando, ficando e fiquei. Achei melhor não ver o fecho daquela história.

Bem, na concepção deles, estou morta. Agora é esperar para ver no que dá. Coloquei a cabeça entre as mãos e ameacei chorar. Foi quando um pensamento lindo entrou na minha cabeça:

– Adeus, meu amor. Não teria mesmo chances com você. Agora que desencarnou quem sabe podemos nos comunicar melhor. Antes você nem olhava para mim e eu te amo tanto!

Gente!... O que seria aquilo? Levantei de leve a cabeça e vi o Claudinho olhando o livro de presenças e na dúvida se deveria assinar ou não aquela peça da minha mortalha.

O Claudinho me ama? Pensei. Mas, ele é tão estranho. Diz que conversa com os mortos. Está aí... Já que estou morta quem sabe ele conversa comigo? Assim pensando aproximei-me dele e o chamei:

– Claudinho... Claudinho... Sou eu, a Raya. Você consegue me ver, falar comigo? Olha, eu não morri. Eu não estou dentro daquele caixão!

O menino olhou em minha direção e emitiu um pensamento deste jeito:

– Raya, busque Jesus. Somente Ele poderá ajudá-la neste momento. Eu pouco posso fazer.

– Claudinho, me leva com você... Eu juro que não vou te assustar!

– Procure Jesus. Vamos orar juntos?

– Orar?

– Sim. Rezar, se preferir.

E o garoto fez uma oração que iluminou tudo ali, acabando com aquele cheiro de morte insuportável que asfixiava minhas narinas. Não deu outra: não sei se era o Jesus ou alguém a mando Dele, o fato é que um ser maravilhoso se aproximou de mim, tomou minhas mãos e me disse:

– Rayane, acabou para você!

– Acabou? O que acabou?

– Seu tempo aqui. Brincou tanto que nem o viu passar e ele passou tão rápido que pegou você ainda menina!

– E o que eu fiz para que o tempo passasse assim tão rápido?

– Você foi dando nós e mais nós na sua linha da vida e acabou encurtando-a.

– Sério? Que linha? Que nós? Perguntei-lhe.

– Quando se é jovem e brinca com coisas sérias podemos ser surpreendidos pela morte...

Ele falou de uma maneira que eu comecei a me preocupar. Achava que vivia como uma pessoa normal. Estudava pouco, ria muito, ia ao cinema, via TV, curtia meus hits, já estava começando a frequentar as baladas, bebia de vez em quando e naquele dia me excedi. Enfim, fazia tudo o que uma pessoa normal faz, menos fumar. Eu nunca tinha usado drogas alucinógenas. Isto não. O Nandão insistia, mas eu aguentava firme.

– Você se preparou muito para renascer. Esqueceu bem rápido seus compromissos. Aos doze já deveria estar frequentado uma escola de formação cristã. Aos quatorze ser monitora nela e aos quinze estar ingressando nas reuniões de estudos mediúnicos. No entanto...

– No entanto o quê?

– Cada vez que não cumpria esses compromissos assumidos você dava um nó na linha da sua vida que deveria ir até os seus trinta e tantos anos. Viu? Não tinha tanto tempo de vida e mesmo assim brincou quando deveria estar trabalhando e aproveitando as oportunidades que a vida de encarnada oferecia a você.

– Mas eu não sabia de nada disto!

– Sabia sim, o Claudinho te convidava sempre e você ria dele. E olha quem ficou aqui para socorrer você. Os outros, seus “amigos” estão agora jogando terra no seu caixão e loucos para ir para casa. Alguns deles vão morrer de medo de você aparecer para eles. O Claudinho, contudo, aqui permanece. Ele nos vê e vai aguardar o desfecho da nossa conversa.

Olhei o Claudinho. Não era lá essas coisas de beleza, mas era bonzinho. As meninas costumam não gostar muito dos bonzinhos. Costumam chamá-los de bobinhos, assim como eu. Aproximei-me do Claudinho e lhe disse:

– Claudinho, estou morrendo de vergonha de você. Me perdoa?

Ele sorriu, meneou a cabeça alisou meus cabelos e me disse:

– Raya, eu amo você!

Ah este amor! Ele não se importa com a morte e vence-a. Tive uma vontade de abraçá-lo, beijar suas mãos, seus pés...

– Vá agora, minha querida. Cassius é o seu mentor espiritual e, certamente vai conduzi-la a um departamento melhor para que não fique por aí exposta a espíritos infelizes que gostam de aproveitar de mocinhas recém desencarnadas como você. Claudinho me olhou mais uma vez e me disse:

– Da próxima vez veja se volta num corpo bem feinho para não ter o desejo de mostra-lo tanto e não acontecer de novo o que aconteceu com você.

– E o que aconteceu comigo? Incrível, mas eu morta e ele vivo, conversávamos naturalmente.

– Pergunte ao Cassius. Ele vai explicar melhor que eu.

– Cassius, fala então. Estou curiosa.

– Aconteceu que, de tanto expor seu corpo a olhares malignos de encarnados e desencarnados descomprometidos com a moral, permitiu que vibrações bastante negativas a envolvessem. Energias maléficas desequilibraram seu corpo espiritual, enfraqueceram o corpo físico e fragilizaram o sistema imunológico. Bastou uma gripezinha que evoluiu depressa para uma pneumonia para tirá-la do santuário que era seu corpo de menina bonita.

– Então foi isto? Eu morri de pneumonia?

– Não. Morreu de invigilância!

– Mas tantas meninas e mulheres se vestem assim...

– Rayane, cada um tem sua história e cada história com seus cuidados! Nunca devemos seguir muito de perto certas atitudes dos outros. Pode ser que para eles os efeitos sejam outros, diferentes dos nossos. No seu caso, deu no que deu...

Foram as últimas palavras que ouvi ali. Depois senti que desfalecia e acordei num grande hospital onde me reanimaram. Agora já faz uns dez anos que tudo aconteceu. Claudinho é belo. Santo Deus, como ficou lindo depois que virou homem maduro! Ah se eu soubesse! Teria ficado com ele desde o dia em que me ofereceu um sorvete de leite condensado que eu adorava! Eu tinha só uns doze anos, foi no dia da festa junina... Eu agradeci e corri feito louca procurando o Nandão, bonitão, brigão, machão, disputadíssimo entre as meninas! Bom, o fato é que morri de invigilância e agora morro de vergonha quando olho meu mentor que cuidou de mim com tanto carinho. Morro de vergonha das roupas que usava, dos lugares que gostava de ir, das músicas que curtia, dos papos... Vivia a vida que bem entendesse, mesmo tendo o Claudinho sempre por perto. Aquele menino estranho, feinho e que falava com os mortos e que por isto eu ria tanto dele!

Olha, obrigado por me ouvirem. Tchau, se der conte isto para as meninas e os meninos da minha idade, quer dizer, da idade que eu estava quando...

Eu e Luana permitimos que a Rayane contasse sua experiência. Está hoje com vinte e cinco anos, mas ainda continua como se tivesse quinze. A ficha dela ainda não caiu. Como os encarnados costumam dizer. Melhor assim porque não sofre tanto. Ficamos sabendo que vai renascer filha do Claudinho. Agora sim, terá um pai que vai cuidar muito bem dela, porque o anterior... Bem... Deixemos as conclusões por conta de vocês que nos leem. (*)

 

 (*) Este conto foi mediunicamente inspirado pelo Espírito Elias a Guaraci de Lima Silveira, que reside em Juiz de Fora, MG.



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