Estranha noite - Guaraci Silveira
As portas haviam-se fechado. Não era tão tarde assim. Do lado de fora, Marcelina observa aquele movimento estranho que acontecia na casa dos Araújos.
– O que será que está acontecendo? Perguntava-se.
Como era ainda menina de onze anos, não lhe cabia interrogar. Seu grande amigo Lauro era filho daquela família, mas ela não sabia se ele também havia se recolhido tão cedo. Fora até ali para perguntar-lhe uma questão de matemática que estava estudando. Marcelina era muito estudiosa e Lauro era muito bom naqueles assuntos e eram amigos desde sempre, pois nasceram no mesmo dia e horário, numa incrível coincidência. Parece que os astros se alinharam e eles nasceram!
– Bem, não me compete querer saber o que passa na casa dos outros. Pensou novamente Marcelina e, decidida tomou o caminho de casa, sendo que ainda passou na casa de dona Arminda para desejar-lhe boa noite. Ao chegar em casa percebeu que seu irmão mais novo estava com febre alta preocupando sua mãe, uma vez que seu pai havia viajado a negócios. Marcelina teve que cuidar da mãe e do irmão, dada a fragilidade de ambos. Deu um chá de marmelo e as coisas se acalmaram. Estava pronta para ir deitar-se quando bateram à porta. Marcelina foi atender.
– Por acaso vocês têm uma coada de café para me emprestar? É que chegou uma visita sem avisar e estamos sem café, disse a vizinha Augusta com cara de sono.
Marcelina buscou o café e a entregou. Augusta jurou que devolveria a dádiva, mas Marcelina disse não ser necessário. Afinal:
– Vizinhos são para essas horas mesmos, disse com graciosidade.
Marcelina era muito graciosa. Diziam as línguas fofoqueiras que arrebentaria corações quando se tornasse uma moça. Seria vistosa e prendada!
Pronto, agora Marcelina iria dormir, já era tarde 20:00 horas, olhou no relógio de parede, herança de um avô falecido ano passado. Preparou-se convenientemente, mas quando fazia suas orações eis que um barulho muito grande se fez ouvir em toda a cidade.
– Que é isso? Perguntou-se
Tornou a vestir sua roupa de sair e saiu em busca de informações, assim como quase todos daquele lugar. Ninguém sabia dizer o que era. Carolas se benziam dizendo que era o fim do mundo e outros ironizavam dizendo que algum país queria mandar uma bomba e errou o alvo! Ninguém conseguia descobrir a causa do estrondo, mas todos ficaram atentos aguardando novas investidas do inimigo oculto. Passou-se uma hora e muitos estavam deitados na grama do jardim, outros nos bancos da praça e todos dormindo o sono mais tranquilo que se podia ver. Marcelina não. E ela teve uma ideia, ir à casa de Lauro para ver se ele havia escutado o barulho e se podia dizer, dentro dos seus cálculos matemáticos o que podia ser.
Ao chegar à casa de Lauro, estava tudo em profundo silêncio. Nem uma vela acesa, nem um lampião, nem gemidos de sustos, nem nada! Tudo estava muito enigmático e, para piorar Marcelina viu o vulto de um fantasma correndo em direção ao morro onde morava um estranho curandeiro.
– Fantasmas também? Perguntou-se.
Não havia terminado suas reflexões quando um gato preto surgiu em sua frente e roçou suas pernas como que pedindo socorro.
– O gato preto com medo? Pensou.
Acolheu o bichinho dando-lhe um colo e disse-lhe algumas palavras de conforto que o bichano certamente não entendeu. Mas, dado às suas orelhas que se levantaram ele deve ter pegado a vibração da menina e acomodou-se feito uma criança naquele colo amigo. Marcelina foi caminhando devagar em meio às brumas da noite quando ouviu nitidamente:
– Marcelina, venha aqui.
Ela parou e olhou em derredor. Quem a estava chamando? A voz não era conhecida e não viu ninguém. Então começou a juntar os fatos: o estrondo, o fantasma, o gato preto e agora aquela voz desconhecida. Claro que sua imaginação voou alto e ela pensou:
– O estrondo foi mesmo uma bomba e estamos todos mortos!
Já que estavam mortos o jeito era buscar o santo padre Menelau que havia morrido fazia tempo e diziam que ele era o protetor dos vivos daquela cidade.
– Padre Menelau... Padre Menelau... Saiu gritando em meio à escuridão. Os que dormiam acordaram assustados.
– Padre Menelau? Ué Padre Menelau está morto e porque estão chamando por ele, acaso também morremos?
E formou-se grande confusão. O irmãozinho de Marcelina apareceu choramingando e expulsou o gato do colo de Marcelina, deitando-se nele, o gato ficou furioso e ameaçou arranhar o garoto e Marcelina teve que pegar um em cada braço e como pesavam!
Dado às circunstâncias, os que acordaram resolveram iniciar a reza de um terço para evocar bons Espíritos caso estivessem mesmo mortos. Marcelina os observava e via o terror estampado em suas faces e olhos e em muitas daquelas faces lágrimas desciam torrencialmente. E ouvia:
– Mamãe, mamãe, eu também morri. Venha me buscar
Outro clamava
– Januário, eu sei que fiquei te devendo uma enorme quantia, mas, por favor não me assombre, me perdoe.
– Clebinha, eu não tive culpa da sua morte pelo parto do nosso filho bastardo. Você morreu por você mesma. Por favor, não venha se vingar de mim!
– Flavinho, eu te traí só uma vez. Sei que você se suicidou por isso, porém, nunca mais tive homem nenhum em minha vida. Me perdoa, Flavinho, eu até que te amava, mas você era feinho e quis um mais bonitinho.
E todos se revelaram naquela noite insana. Marcelina, ainda menina pura não conseguia entender a extensão daqueles rogos, mas entendiam que eram de medo e confessionais.
As coisas não melhoravam. A noite se ia entrando dentro dela mesma. O frio começava e ninguém tinha coragem de voltar para suas casas. O Lauro? Ah este havia sumido de vez. Marcelina era a única menina sem medo ali, porém assustada. Afinal, era só uma criança!
A noite estava muito alta e ninguém sabia se estava vivo ou morto, mas todos tinham certeza de que viviam mesmo depois da morte. Na história do mundo tantas pessoas buscaram a imortalidade e eles a tinha ali, bem dentro de si. Houve um grande berro. Isso lá pelas três da manhã. Um berro assustador e logo em seguida deu-se a impressão que tropéis de cavalos indicavam que eles estavam em desabalada correria em busca ou fugindo de algo.
– Santo Deus! - pensou Marcelina. Se estamos mortos não tem problema eles tropeçam só em nossos corpos. Mas, se estamos vivos eles podem nos matar! E a gritaria se formou. E era ouvida e repetida pelos fantasmas presentes e todos se agarravam morrendo de medo, exceto a Monica que andava querendo agarrar o Marcilio fazia tempo e aproveitou a oportunidade. Mesmo mortas as almas pecam! Os cavalos passaram e todos continuaram vivos ou mortos e os cavalos sumiram. A noite era muito escura, ainda bem que não era tempo do inverno onde tudo se congelava.
Marcelina estava muito cansada e resolveu deitar-se e esperar que seu anjo guardião aparecesse e a levasse para o além, muito além, muito distante de tudo aquilo. Tem horas que a morte é grata solução! Escolheu um lugar tranquilo na grama e deitou. Era manhã alta quando acordou. Não viu ninguém na praça.
– Ué os defuntos foram todos recolhidos? Mas, por quem se estavam todos mortos? O gato preto desapareceu e seu irmãozinho não estava com ela. Apenas ela nas cinco da manhã, sozinha naquela praça. Foi quando ouviu os gritos esbaforidos da sua mãe procurando por ela.
– Estou aqui, mamãe.
– Ah, pensei que havia morrido! Ainda bem que está no terreiro de casa!
Marcelina retornou desapontada para dentro de casa e pensativa em tudo o que aconteceu e queria uma resposta. Mais tarde Lauro a encontrou.
– Por que deitaram tão cedo ontem?
– Deitamos no horário normal.
– Mas, eu fui até sua casa e estava tudo escuro!
– Que horas foi lá?
– Sei lá... 20 horas talvez.
– Mas, neste horário estamos todos dormindo mesmo.
Marcelina começou a andar, andar e depois de cansada sentou-se sob uma árvore frondosa e surgiu-lhe um homem de barbas brancas e muito amistoso.
– Marcelina, tudo que vivemos está gravado em nós e, de repente surge como fantasmas querendo sair de dentro de nós. São nossos fantasmas internos. Enquanto os seguramos eles nos atormentam com ideias estranhas de adultério, roubos, desejos mesquinhos e tantas outras desgraças que causam medo e temos a impressão de que todos os gatos pretos surgem exigindo que não os desprezemos. Gatos pretos são símbolos de culpas e medos. Então, chega a hora que tudo tem que sair de nós e parecem que saem com estrondos, barulhos, algazarras que assustam. Mas, são nossas memórias não resolvidas. Você está se preparando para ser alguém muito importante para este povo simples daqui. Será a primeira professora das suas vidas, então o seu ser divino exigiu que expulsasse todas as suas leviandades do passado para que ficasse limpa para educar almas. Os educadores necessitam ser limpos e castos de toda e qualquer ideia diferente do sublime ato de educar. Estar à frente de um grupo de alunos falando e instruindo, requer lealdade a Deus, pois, todos os alunos são filhos e filhas Dele. Parabéns, agora você está apta. Foi tudo o que aconteceu com você enquanto orava, antes de adormecer em seu leito, na sua casa. Ore sempre e você estará sempre hábil a educar com galhardia assim como fez nosso Mestre Jesus que sempre orava!
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