Educação e solidariedade: solução para as crises sociais - Rogério Coelho

Sem a reforma do homem, antes de tudo, não se pode esperar o reinado da justiça e da paz
 “(...) Procuras grandezas? Não as busques!...” Jeremias, 45:5.


Inúmeras criaturas se convulsionam em arroubos de violência e corrupção de variegado matiz, parecendo terem perdido o endereço de Deus.  Mas, não falece dúvida que a Terra não é um barco à matroca: Jesus está no leme!...

Impotentes e estarrecidos ante a onda avassaladora de despautérios de vária ordem, quedamo-nos inermes, quando deveríamos oferecer a nossa gota de serviço em prol da reversão de tais calamidades.  Há muito que se pode fazer e está ao nosso alcance, a começar pelo próximo.

Ao seu tempo, detectando a gravidade das crises sociais, Deolindo Amorim escreveu[1]: “(...) diz-se às vezes que o Espiritismo se descuida inteiramente da vida material. É uma suposição totalmente errônea. Bastaria lembrar que a Doutrina Espírita reprova a omissão ou o enclausuramento deliberado para fugir do mundo, pois devemos participar e, assim, oferecer à sociedade a nossa cota de serviço. Como poderemos trabalhar pelo melhoramento do mundo, se nos afastamos ou nos alienamos na “vida puramente contemplativa”, que é muito cômoda, mas inteira­mente infrutífera por ser inoperante? A Doutrina Espírita nunca esteve e não está à margem dos problemas humanos. Seria aconselhável, a esta altura, pedir atenção, de um modo especial, para a III parte de “O Livro dos Espíritos”, pois ali não somente os estudiosos do Espiritismo, mas também sociólogos e economistas encontrarão disposições sobre a necessidade da vida social, distribuição da riqueza, problemas de reprodução, relações trabalhistas etc.

O pensamento social da Doutrina Espírita ainda não foi descoberto em sua plenitude, a não ser pelos que se interessam por esta área de estudos. Convém notar, entretanto, que certas mudanças, hoje incorporadas ao nosso estilo de vida, já estavam previstas na Doutrina há mais de cento e cinquenta anos. Legislação sobre repouso, equivalência de direitos entre o homem e a mulher nas competições da vida pública, liberdade de pensamento, dignidade do trabalho como dever social, não mais como simples obrigação dos mais necessitados, educação do homem como fator determinante da reforma da lei penal, por exemplo. Condizente, porém, com a linha ética de suas formulações, a análise espírita encaminha-se mais para o meio-termo, justamente porque a sua índole não se ajustaria a nenhum tipo de radicalismo. Por isso mesmo, não perde de vista o problema do desacordo entre o necessário e o supérfluo, fenômeno gritante na sociedade de ontem como na sociedade de hoje.  De fato, há necessidades reais e necessidades artificiais. O desejo de ostentação e o “delírio de grandeza” tanto na administração pública quanto na gestão do orçamento particular criam necessidades de efeito aparatoso e provocam insegurança e aflições em todo o corpo social, ora direta, ora indiretamente.

Ao lado de grandes e suntuosas superfluidades, se abrem claros sensíveis e deprimentes de abandono das necessidades primordiais do ser humano como escola, saúde, preservação da natureza, defesa da vida. Não é a única, porém uma das causas de muitas crises internas com reflexos externos. A crítica espírita incide, por isso mesmo, nos desvios tantas vezes notados entre as necessidades reais e as necessidades acessórias ou secundárias, o que quer dizer, em suma, que o Espiritismo não desloca o homem da realidade social. Sem compromisso com qualquer doutrina política, encara os fatos com objetividade como aqui se vê[2]: “a civilização criou para o homem novas necessidades e estas são relativas à posição social que ele conquistou. Teve ele que regular direitos e deveres dessa posição por meio de leis humanas. Entretanto, sob a influência das paixões, por vezes ele criou direitos e deveres imaginários, condenados pela lei natural e que os povos riscam de seus códigos à medida que progridem. A lei natural é imutável e a mesma para todos. A lei humana é variável e progressiva. Só ela pode na infância da humanidade, consagrar o direito do mais forte. (...) Não é sem motivo que as previsões espíritas encarem o papel decisivo da educação no mecanismo das relações sociais. Como querer uma reforma de mentalidade sem esclarecimento, e sem um plano de educação em profundidade? Que estamos vendo hoje, por exemplo? O desespero causado pelo desemprego, o pânico generalizado por causa da incerteza e da falta de segurança pessoal. As ciências e as técnicas, utilizadas em grande parte para fins de destruição, constituem uma das maiores e mais pavorosas ameaças à humanidade. Então, muita cultura humana, muita sofisticação tecnológica, mas cada vez maior desrespeito à vida humana e à Natureza. E não poderia tanto poder de criatividade científica ser posto a serviço do bem estar humano? E por que não o é? Porque o desenvolvimento da capacidade intelectual não está em correspondência com o sentimento. E o homem sem sentimento ou insensível é tão indiferente à vida de seu semelhante como qualquer máquina. Sem a reforma do homem, antes de tudo, não se pode esperar o reinado da justiça e da paz. É uma das proposições implícitas no contexto espírita.

Ao lado, porém, desta desalentadora situação geral, a ignorância e o fraquíssimo teor de educação concorrem para o agravamento das dificuldades, pelo menos até certo ponto. Muita gente vive desregrada­mente, sobrecarregando sua já sacrificada economia em futilidades. A imprevidência, em muitos casos, é responsável pela decadência material de muitas pessoas, cujos problemas denunciam a extravagância em que viviam. Se houvesse mais ordem na vida particular, menos desperdício em todos os segmentos da sociedade, a gravidade da situação certamente não assumiria proporções tão alarmantes. Sabe­mos que existem causas mais remotas e mais complexas, porém o desequilíbrio nos hábitos e na economia particular tem repercussão muito funda na crise social.  E, por cima de tudo, há uma crise moral. A falta de exemplo, tanto faz no Poder Público como na esfera familiar ou empresarial, gera a incerteza, a desconfiança, a permissividade irrefreável...”

Numa prova cabal de que são de todos os tempos os problemas sociais, com suas terríveis sequelas, dada a omissão dos que poderiam contribuir senão para a sua erradicação, pelo menos para sua minimização, escreveu[3], mais recentemente, Joanna de Ângelis, em absoluta e total sintonia com Deolindo Amorim, desenvolvendo o conteúdo da questão número 886 de “O Livro dos Espíritos”, na qual Allan Kardec aborda o conceito de Caridade segundo a visão de Jesus: “(...) a civilização, dita cristã, no ocidente, ainda não compreendeu que Jesus é o exemplo da centralidade mais admirável que se conhece. Em todo o Seu ministério jamais houve lugar para a exclusão, para a exceção. Ele sempre Se caracterizou pela proposta de solidariedade humana e pela igualdade dos direitos humanos.

A Sua proposta renovadora tem uma direção certa: a transformação moral da criatura para melhor, sempre e incessantemente. Nesse sentido, ninguém se pode considerar indene ao crescimento interior ou pelos demais excluído da oportunidade.

Jamais o Mestre preferiu aqueles que têm mais ou que pensam ser mais, preterindo aquel`outros detestados, marginalizados, esquecidos... À semelhança dos profetas antigos, Ele veio resgatar os mais sofridos, os mais perseguidos, os mais desesperados.  Não há lugar em Sua palavra para qualquer tipo de preconceito.  Ele próprio pertenceu a um lugar de excluídos, conforme anotou João no comentário feito por Natanael, quando convidado por Filipe para conhecê­-lO[4]: — “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?”

Não poucas vezes Ele sofreu o opróbrio, a humilhação, o acinte, a perseguição sistemática...  Conhecendo, portanto, a hediondez a perversidade e a injustiça humana, Ele coloca no centro aqueles que são empurrados para a periferia, para a marginalidade, fazendo com eles um pacto de amor.  É esse amor que viceja em toda a mensagem neotestamentária, renovando as esperanças do mundo e apontando um rumo de segurança onde predomine a vera fraternidade.

Os indivíduos que se apresentam como sendo mais poderosos, mais possuidores, também não foram rejeitados, porquanto Ele sabia que esses igualmente são infelizes, refugiando-se no terror, na opressão, na vingança, na exploração do seu próximo, por cujos artifícios se sentem seguros nos tronos de mentira em que se as­sentam.

Os opressores são pessoas que perderam a direção de si mesmas, tornando os corações empedrados, por não se permitirem a doçura que tanto desejam e de que sentem irresistível falta.  Invejam­-na, em quem a tem, e por isso, mediante a projeção do seu conflito, perseguem-no implacavelmente, com violência, como se a houvessem roubado do seu sacrário íntimo.

Jesus respeitou todas as vidas, concedendo o direito de cidadania igualitária a todos quantos adotassem o Reino de Deus e se empenhassem pelo conseguir. Os modernos cristãos, conforme ocorreu com mui­tos outros no passado, não compreenderam esse ensinamento, que registraram no cérebro, mas não insculpiram nos sentimentos.  São capazes de abordar o tema da solidariedade com lágrimas, no entanto, não saem do pedestal em que se encastelam, para proporcionar centralidade ao seu próximo, arrancando-o da periferia marginalizadora.

Não obstante as gloriosas conquistas culturais, científicas e tecnológicas, o ser humano ainda mantém o seu próximo em muitos porões de exclusão, que são habitados pelos que se fizeram ou foram tornados marginais: crianças que se prostituem por imposição da crueldade moral, geradora da miséria sócio-econômica, pela escravidão do indivíduo que não tem escolha e per­deu a liberdade de decisão e de movimento, e os que vivem nas ruas do mundo, desconsiderados e sem quais­quer direitos, perfeitamente descartáveis pela sociedade hedonista. Suas dores, suas necessidades, são ignoradas, e não raro, tidos como lixo social, são assassinados, exilados, expulsos dos seus guetos, porque enxovalham a sociedade que os excluiu.

Trata-se de hediondez da modernidade, que somente pensa no crescimento horizontal do seu poder e da sua libertinagem, esquecendo-se do ser humano em si mesmo, que é o grande investimento da vida. Nesse lixo social encontram-se também muitas joias perdidas: homens e mulheres de bem e de valor, que derraparam nas ruelas da existência e não tiveram resistência para enfrentar e vencer as vicissitudes, enveredando pelo alcoolismo e pela toxicomania. Perdida a dignidade humana, eles relutam para permanecer nesses sítios de vergonha e sombras, sendo denominados como criminosos, mesmo que crime algum hajam cometido. Rotulados de lixo, criminosos, excluídos, gentalha, vidas inúteis, perdem a identidade e não se encorajam a recuperar a sua humanidade, aquela que lhes foi ti­rada e nunca devolvida.

(...) É impressionante observar como poucos cristãos dão-se conta do que está ocorrendo à sua volta e poderá atingir o seu castelo de refúgio e de ilusão.  Mesmo quando vêm à superfície as denúncias contra a dignidade do seu próximo e eles aparecem como fantasmas apavorantes, esses cristãos cerram os olhos para não os ver e tapam os ouvidos, a fim de não escutarem o clamor das suas vozes, porque isso os perturba e inquieta, tirando-lhes alguns momentos de sono ou de excesso de alimentos. E confessam a crença em Deus, que dizem amar, em Jesus, que tomam por modelo teórico, mas não Lhe seguem os ensinamentos libertadores...  Perfumados e bem vestidos, evitam o contato com eles, nunca se permitem ir aos porões, temem-nos e abandonam-nos, quando deveriam visitá-los e amá-los, procurando conviver com eles, trazendo-os à luz do dia da compreensão de todos.  Eles ficam nos seus porões, e os cristãos nos seus esconderijos de luxo e de proteção, com medo deles, aqueles a quem Jesus procurou trazer para o centro, retirando-os do abismo escuro em que se refugiavam.

Felizmente, nem todos os cristãos se escondem do seu próximo retido nos porões. Eles denunciam a sua existência, tentam arrancá-los dos sórdidos lugares onde jazem esquecidos e perseguidos, recordando-se de Jesus e imitando-O. Raia uma luz na treva em favor dos excluídos, ainda muito débil, é certo, mas que se expandirá como o rosto brilhante da manhã após a noite renitente que vai devorada pela claridade.

O novo Cristianismo propõe que se acabem com os porões, que se recicle o lixo social mediante os mecanismos do amor, que se traga para o centro da comunidade todos aqueles que têm sido excluídos, de forma que a sociedade se torne verdadeiramente dig­na do Mestre e Senhor, que é Modelo e Guia para to­dos através dos evos...”

 


[1] - AMORIM, Deolindo. O Espiritismo e os problemas humanos. São Paulo: USE, 1985, cap. 2.

[2] - Comentário de Allan Kardec, a propósito da q. 794, (L.E.) referente ao progresso da legislação humana.

[3] - FRANCO, Divaldo. Sementes para a Felicidade. Salvador: LEAL, cap. 24.

[4] - BÍBLIA, N.T. João. Português. O novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1983. cap. 1.vers 46.                  



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