As raízes da moderna eremitagem, suas sequelas e cura - Rogério Coelho

A vida social é a pedra de toque das boas ou más qualidades

“(...) Os mecanismos da evolução exigem do homem o instinto gregário. Isolado, o ser humano se estiola e morre: não progride”.- François C. Liran


Segundo o ínclito Mestre Lionês(1), “(...) para o homem que vivesse insulado não haveria vícios nem virtudes; preservando-se do mal pelo insulamento, o bem de si mesmo se anularia. 

A vida social é a pedra de toque das boas ou más qualidades: a bondade, a maldade, a doçura, a violência, a benevolência, a caridade, o egoísmo, a avareza, o orgulho, a humildade, a sinceridade, a franqueza, a lealdade, a má-fé, a hipocrisia, em uma palavra, tudo o que constitui o homem de bem ou o perverso tem por móvel, por alvo e por estímulo as relações do homem com os seus semelhantes”. 

Desde os mais remotos horizontes da humanidade, as criaturas perceberam que viver em grupos sociais era extremamente vantajoso e conveniente em todos os sentidos, inclusive para as prementes questões da sobrevivência. Mas a partir do período histórico que os especialistas chamam de “Horizonte Agrícola”, o instinto gregário se fez sentir mais forte. 

O que determinaria, então, a fuga do convívio social praticada por inúmeras criaturas?! Estudando o assunto, a nobre Mentora de Divaldo Pereira Franco nos oferece(2) explicações bastante ponderáveis que nos fazem compreender essa anomalia do comportamento humano. Ela ressalta dois fatores essenciais para tal comportamento antigregário: o primeiro são os registros no inconsciente profundo e o segundo fator deflui da ignorância medieval, atavismo ainda remanescente no homem.

Leciona Joanna de Ângelis(2) que o primeiro fator, ou seja, “os registros no inconsciente profundo são resultantes de comportamentos inadequados ou destrutivos em outra existência ou na atual, que encarceram o ser em reminiscências perturbadoras que se encontram atuantes. Nesse caso, sentimentos controvertidos se mesclam nos processos normais das atividades patológicas, gerando situações de desconfiança e revolta, mágoa e insegurança...

Inadvertidamente, a criatura experimenta a desagradável sensação de haver escamoteado a verdade ou agido erradamente, sem que ninguém tivesse ideia ou conhecimento dos seus atos reprocháveis.  Porque os dissimulou com vigor ou conseguiu negá-los com veemência, permanece-lhe a crença subjacente de que, num ou noutro momento pode ser chamado à prestação de contas ou ser desmascarado, tombando em descrédito ou sofrendo a zombaria de quem hoje lhe oferece confiança e amizade.

Acoimado pela culpa, foge dos relacionamentos de qualquer natureza, cultiva o mau humor, processa erradamente o que ouve, sempre considerando que todas as queixas e reprimendas, advertências e observações que o alcançam têm por meta censurá-lo, humilhá-lo, estigmatizá-lo... Assim acreditando, inconscientemente arma-se contra a família, o grupo social, as pessoas com quem convive, sempre escudado na autocompaixão, na autorrecriminação ou na autopunição. Esse indivíduo é muito difícil de ser aceito no convívio social, instável no comportamento que mantém e, não raro, é malicioso, quando não se faz perverso em mecanismo de autovalorização equivocada.

O segundo fator que deflui da ignorância medieval nele ainda remanescente, transformava tudo em pecado, culpa e imundície dignas de punição. Apesar do conflito, prossegue mantendo a mesma conduta irregular através da ação oculta, quando as circunstâncias o permitem, ou mental e emocionalmente, desde que não seja percebida pelas demais pessoas a presença desses algozes internos que o atemorizam e o fazem sofrer.   Tudo aquilo quanto lhe parece ilícito e negativo, desde que conhecido, é vivenciado intimamente, sem testemunhas, em tormentosa busca de alegria e de prazer, que não se podem manifestar em razão das circunstâncias serem necrotizantes. Isso resulta em sentimento de culpa e vergonha. Consequentemente (...) a culpa e a vergonha têm semelhanças de conteúdo, porque ambos coíbem a liberdade e proporcionam sofrimentos que devem ser ultrapassados e vencidos.  Aceitando o corpo e suas funções, sem o sentimento de vergonha pelos seus impulsos primitivos, que levaram a comportamentos escusos, mais fácil fica o processo de diluição do conflito.  Da mesma forma, assumindo a culpa e trabalhando-a com naturalidade, o sentimento de perdão e compreensão aos fatores que trabalharam para a sua instalação facultam-¬lhe o desaparecimento paulatino até a total desintegração.

Pode-se acrescentar ainda, que esses dois sentimentos podem ser decorrência de uma convivência doentia com os pais neuróticos e irritados, que gritam e acusam, que maltratam e agridem a criança que, se sentindo impossibilitada de tolerá-los, foge-lhes da presença, refugiando-se no seu quarto ou no mundo particular da imaginação.

Enquanto se encontra sob essa tensão do lar, incapaz de entender o conflito que experimenta, em mecanismo de furtar-se à situação constrangedora, divide a unidade da personalidade, o seu equilíbrio, e passa a vivenciar uma conduta esquizofrênica”.

Muitos creem que o contrário do amor é o ódio.  Ledo engano: o contrário do amor é a indiferença. E nada é mais cruel e destrutivo que a sua presença no relacionamento entre pais e filhos. Joanna de Ângelis assinala tal procedimento como verdadeiro “assassinato em vida” dessas vítimas, em geral indefesas.  Eis como a Mentora Amiga aborda a questão2:

“(...) O pior procedimento perpetrado pelos pais, é o que se expressa pela indiferença em relação à criança, dando-lhe a ideia de que é invisível, inexistente... Tal crueldade, executada pelos adultos, fere profundamente o ser que se inibe e perde o sentido existencial e o significado psicológico da vida. A criança que sobrevive psicologicamente a esse conflito no lar torna-se incapaz de amar, sempre atormentada pelo ódio, que decorre do medo de novos sofrimentos, vivificando a amargura de haver sido morta em vida.

Para o cometimento da saúde, somente através de terapia cuidadosa e prolongada, acompanhada do esforço desenvolvido pela criatura para autocurar-se, é que culminará o processo de libertação desses algozes mediante a entrega total ao Self, num relacionamento profundo, exteriorizando os sentimentos de forma equilibrada e compensadora”.

Inclui-se, segundo a nobre Mentora, de maneira muito significativa para a erradicação dos sentimentos conflitantes “(...) a busca do amor como terapia, e depois como expressão de vida, porquanto nele se podem fundir todas as emoções, anulando as imagens odientas dos pais cruéis.

(...) O amor é o verdadeiro milagre da vida.  Frágil, é portador de força incomum.  Assemelha-se a essa persistência e poder do débil vegetal que medra em solo coberto de cimento e asfalto, enfrentando todos os impedimentos, e ali ergue sua pequenina e delicada folha verde de esperança.

É indispensável abrir-se ao amor, a fim de que o amor se assenhoreie do coração e passe a comandar as disposições existenciais, traçando planos grandiosos para o futuro.  (...) O amor é terapia eficaz para vários distúrbios do comportamento”.

 

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1 -  KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. 51.ed.Rio de Janeiro: FEB, 2003, 1ª parte, cap.III, item 8.

2 - FRANCO, Divaldo. O Despertar do Espírito. 5.ed.Salvador: LEAL, 2003, cap.“Sentimentos Tumultuados”. p. 155-160 e 167-168.



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