Apenas uma lágrima - Guaraci Silveira

Dentro daquele caixão estava o meu corpo. As pessoas caminhavam silenciosas por entre as ladeiras da minha cidade. De alguma forma havia imprimido naqueles corações, durante o período da minha última existência, alguma coisa de útil. Na verdade, não possuía altruísmos para realizar grandes façanhas no campo da bondade. Era uma pessoa comum. Apenas sabia um ofício que ali ninguém havia ainda aprendido. Por isto mesmo era sempre procurado. Minha vida transcorreu-se sem grandes incidentes, sem grandes vales e muito menos cumes. Podia dizer que minhas ondas percorriam quase sempre em pequenas e longas ondulações. Era respeitado porque não infringia as regras normais da sociedade. Sempre cuidei para que minha imagem não fosse afetada pelas intemperanças espirituais que ainda afloravam do meu íntimo. Todas as vezes que pensava em quebrar regras e silêncios a voz da consciência falava mais alto, a voz da minha mãe ressoava forte em meu coração e lá ia eu, contar até dez, antes de qualquer atitude diferenciada daquelas que normalmente exercia. O cortejo já se aproximava do cemitério. Caminhava com cuidado ao lado do meu corpo, o qual me servira durante cinquenta e cinco anos. Não queria deixá-lo e muito menos sabia o que aconteceria comigo já que as larvas e os microrganismos o esperavam ansiosos para seus deleites e a continuação de suas vidas. Eu olhava as pessoas. Conhecia todas. Elas me levavam para a sepultura enquanto eu caminhava junto a elas naquele soturno momento de despedidas e continuidades. Sim, eu continuava vivo e lúcido e não queria nem pensar no que aconteceria comigo quando fizessem as últimas homenagens e o prefeito proferisse seu habitual discurso de despedida. Desde o momento em que o sangue parou de circular naquelas veias, senti-me fora do corpo e presenciei todas as ações empreendidas para o meu velório. E velaram o meu corpo por quase vinte e três horas. Foram momentos alternados entre quase desespero e profunda paz. Eu olhava para o meu corpo e não exigia que levantasse e continuasse a me servindo. Eu apenas aproveitava o momento para aprender algo absolutamente diferente: estar presente na minha própria morte. Nas conversas com amigos sempre falávamos sobre o assunto e sempre com brincadeiras e ironias. Quando criança espetei uma agulha no braço do meu tio morto para ver se ele reagiria. Maria das Graças, minha irmã, sentia cócegas terríveis na região dos braços e quando me vi sozinho com seu corpo na sala da minha casa comecei a tocá-la para ver suas reações. Ela acabara de desencarnar. Minha irmã nem ligou e então pensei sobre a morte. A morte nos deixa diferente de tudo o que fomos quando vivos. Às vezes não comparecia a enterros. Apresentava meus sentimentos e desculpas. Pouco a pouco fui me afastando da realidade de morrer. Enquanto havia vida deveria aproveitá-la. A morte, um assunto para quando ela viesse. Quando alguma enfermidade mais séria surgisse, então sim, pensaria nela. Aconteceu de repente: uma enfermidade fatal apareceu e ceifou minha vida orgânica. Nem houve tempo para que eu me preparasse para morrer.  E lá estava eu, quase pegando uma alça imaginária do meu próprio caixão.

Não se assustem com esta minha narrativa. Nunca fui e nem sou apologista dos contos de terror. Eles incitam nossas mentes a buscarmos lugares e situações tenebrosas onde o medo passa ser o alimento das emoções. Ali não era questão de medos, era realidade. Eu caminhava lado a lado com o meu corpo que, inerte, suplicava a benção do repouso em terras profundas. O cortejo enfim adentrou o campo consagrado aos mortos. Vi que tiveram o cuidado de cavar a sepultura no antigo lugar onde havia depositado minha mãezinha doze anos antes. Aquilo aliviou um pouco minhas tensões. Então pensava:

– Se tivermos que permanecer para sempre junto aos nossos corpos, com certeza encontrarei minha mãe que, de acordo com esta tese, obviamente estará ao lado da sua antiga morada de carne. Adiantei meus passos e fui ver se a encontrava em algum lugar daquela cova. Nada. Nem mesmo seus ossos ali se encontravam. Com certeza teriam sido removidos e colocados em local próprio por detrás do necrotério. Agripino, o coveiro, me contava que fazia constantemente este tipo de remoção. Procurei o Agripino, aproximei-me dele e perguntei pelos ossos da minha mãe. Tive um enorme susto, de dentro dele saía uma frase que me deixou atordoado:

– Andem logo com isto, tenho encontro marcado com a Minervina.

A Minervina era mulher do Silvestre, meu amigo. Então ela o traia com o coveiro? Fiquei atordoado. Ali começavam minhas primeiras experiências de defunto vivo. O prefeito não se fez de rogado e pronunciou breve discurso sobre minha passagem pela terra. Depois colocou um ramo de flores nas mãos do meu corpo e fecharam o caixão e lá foi ele descendo vagarosamente aqueles sete palmos de chão. Olhei para o Agripino. Estava impaciente. A vontade era de empurrá-lo para que a coisa acontecesse mais depressa. As pessoas começaram a jogar terras e algumas jogaram flores e vi que uma lágrima salgada inundou minhas mãos.

– Ué? Lágrimas não saem dos olhos? Pensei. Minha atenção procurou os olhos de Fátima da Cunha. Ela chorava e aproximei-me dela e de dentro do seu corpo saía a seguinte frase:

– Adeus meu amor. Um dia nos reencontraremos.

Outra vez fiquei atordoado. Fátima da Cunha me amava? E por que não havia me falado deste amor? Eu era solteiro, livre e a amava também dentro das minhas limitações sobre este sentimento. Aproximei-me dela e toquei seus cabelos. Quantas vezes desejei fazê-lo. Quantas vezes procurei seu olhar nas festas, nas procissões, nas reuniões da prefeitura. Fátima da Cunha sempre se esquivava. Ali, morto, eu podia tocá-la e o fiz com respeito. Ao meu toque ela respirou profundamente e sentiu-se reconfortada. Aos poucos as pessoas foram deixando para trás mais um enterro, mais uma despedida, mais um conterrâneo que partia para as entranhas da terra ou, do nada! Agripino mal colocou a cruz na cabeceira da cova e se mandou apressado para seu encontro desesperado. Fiquei sozinho. Aproximava-se a noite. Dei-me conta, enfim, que teria que ficar ali de guarda por quanto tempo não sabia. Acomodei-me como pude junto à sepultura. Estava exausto. As últimas horas foram de muito desgaste energético e não demorei muito a adormecer.

O dia ia alto quando acordei. Vi dona Vitória depositando flores na sepultura do seu marido, falecido há muito tempo. Ela sempre fazia isto. Fui até ela. Quem sabe veria de novo seu marido. Eu o conhecia e ele deixou saudades porque era muito engraçado. O marido dela não estava lá e dona Vitória voltou para a casa sentido plenamente que seu dever havia sido cumprido. Eu me sentia só. Dois dias depois a ficha começou a cair. Em pouco tempo seria esquecido por todos. Sempre é assim. Sempre se esquece dos mortos. E agora, o que fazer? Onde começar a reconstruir minha vida. Por quais caminhos deveria trilhar para encontrar-me de novo com a alegria, o trabalho e as realizações de sempre? Tive então uma ideia. Por que não ir de novo à minha casa. Morava comigo dona Tiana, idosa, mas que cuidava de mim. Não tinha mais ascendentes nem descendentes. Um filho que a vida a ofertou havia morrido pouco depois que nasceu juntamente com a mãe de Tiana num acidente de automóvel. Era o fruto de um romance sem compromisso, destes que muitas vezes encontramos por aí.  Dei um adeusinho de até breve ao meu corpo e fui caminhar pela cidade. Andei feito forasteiro. Ninguém me reconhecia e passava por todos e os saudava. Apenas Lucinda, menina de doze anos, olhou para mim e saiu correndo com medo. Foi o bastante. Se continuasse a andar por aquelas ruas poderia espalhar pânico e pavor. Dona Tiana falava que via mortos, se fosse até minha casa, com certeza ela me veria. Então fiz uma tentativa. Aproximei-me da casa. Ela estava fechada. Dona Tiana havia se mudado imediatamente para outra cidade. Ouvi de duas amigas que passavam que a velha ficou com medo que eu aparecesse para ela durante a noite e cobrasse o dinheiro que ela havia me roubado. E eu nem sabia disto! Havia bosques na minha cidade. Fui buscar refúgio num deles. Era tarde, quase noite, quando ouvi sussurros. Aproximei-me. Eram o Carvalho e a Lurdinha que se entregavam aos prazeres do corpo, escondidos num local ermo daquela mata. Carvalho era o Juiz de Direito e Lurdinha a mulher do delegado. Mais tarde vi o Souza, o Viriato e o Tonico conversando baixinho arquitetando um plano para assassinar o Mateus. Todos eram irmãos e o Mateus havia herdado grande importância em dinheiro por ser o preferido do pai. O assassinato resolveria a questão e a partilha cairia nas mãos daqueles irmãos desventurados.

Um mês passei ali por entre aquelas pessoas que antes idolatrava como gentis, humanas, cumpridoras com seus deveres, honestas, castas e outros adjetivos maiores. Com quase todas elas tive decepções amargas. Cada qual buscava seus interesses pessoais e procuravam alimentar seus ódios e vinganças planejando desde pequenas ações até grandes loucuras como foi o caso do assassinato do Mateus e que todos deram como lamentável acidente.

Um dia resolvi visitar Fátima da Cunha. Era o último local que faltava para eu ir. Estava com receios e se ela também me decepcionasse? Fátima da Cunha estava com trinta e oito anos e fora casada com Armando Cunha. Seu marido desapareceu misteriosamente e só depois de alguns anos encontraram as pistas que identificavam sua morte prematura numa emboscada de antigos posseiros das suas terras. Não tinham filhos e Fátima da Cunha aguardou durante todos aqueles anos de procura e espera, envolta em sua castidade de esposa digna. Quando tudo foi esclarecido aquela mulher continuou nos seus afazeres, administrando pequena propriedade e produzindo derivados de leite dando continuidade aos labores do seu marido. Ver o que vi no cemitério e sentir nas mãos uma lágrima da sua saudade foi uma surpresa para mim. Será que ela guardou em silêncio uma paixão por mim? Será que ela se apaixonava por todos? Quem era Fátima da Cunha? Numa noite resolvi visitar sua vivenda que ficava um pouco afastada do centro da cidade. Aproximei-me com cuidado. Podia ser que seu ex-marido estivesse de guarda. Se tivesse eu o cumprimentaria, pois quando se morre não se perde as amizades. Fui com cuidado. Bem próximo olhei em derredor. Era tudo silêncio. Quando estamos vivos, batemos uma sineta ou palmas ou chamamos pelos moradores. Quando mortos os cuidados devem ser redobrados, principalmente quando se conserva a ética e a nobreza dos atos. Como não existiam ali campainhas para mortos resolvi aproximar com cuidado. Passei pela porteira com absoluta facilidade e caminhei com bravura até a porta principal daquela casa. Astolfo, o cão de guarda, olhou-me detidamente. Seu olhar parecia-me dizer:

– Conheço você. Pode entrar.

Os cães sabem quem são os amigos e os bem chegados. Motivado pela atitude daquele guardião domiciliar passei pela porta principal e entrei numa sala confortável e cheirosa. Não era impregnada de retratos como se via nas antigas fazendas habitadas por pessoas antigas. Apenas um jarro de flores na mesa central e um quadro de Jesus orando no monte das oliveiras enfeitava as paredes daquele local. Fui caminhando por aquele aposento. Tudo transpirava lealdade e beleza, simplicidade e candura. Ouvi uma voz suavíssima. Vinha de um quarto. A porta estava fechada. Não sabia se entrava ou não. Parei e fiquei ouvindo aquela canção que dizia de esperança e de eternidade, de paz e imortalidade e de encontros das almas nos planos da redenção. Aos poucos fui me envolvendo pelas ondas magníficas daquela melodia. Percebi que era daquele quarto que vinha o perfume que havia sentido na sala. Toda a casa estava perfumada. Aquela melodia penetrava todos os ambientes e aquietava tudo e todos. Alguém se aproximou de mim. Era um homem maduro envergando trajes levíssimos de tonalidade azul claro.

– Deseja entrar e compartilhar do banquete?

Não sabia o que dizer. Estava mudo. Ele sorria-me. Eu era um invasor de casas alheias e não merecia tamanha deferência e ao mais, que banquete ele me oferecia? Banquetes são servidos na sala de jantar e não em quartos. Fiquei sem saber o que dizer ou fazer. Ele, percebendo minha indecisão, colocou suas mãos nos meus ombros e convidou-me a entrar. No quarto, uma cama de casal era coberta por bela colcha de linho, alva como algodão. Num pequeno sofá Fátima da Cunha estava assentada e, de olhos fechados, orava e cantava. Uma força incontrolável fez-me aproximar dela.

– Até que enfim você veio meu amor! Falou-me com naturalidade olhando-me nos olhos.

Lembrei-me da menina Lucinda que saiu correndo quando me viu. Fátima da Cunha também me via e recebeu-me com ternura.

– Quem sou eu? Quem somos nós. Perguntei sem raciocinar àquele Mestre que se tornava meu amigo. 

– É uma longa história, meu filho. Uma longa história. Pouco sabemos da vida porque a maioria vive apenas nas superficialidades do existir. As pessoas sentem medo de aprofundar, de conhecer as origens dos acontecimentos, a essência das coisas. E por isto erram constantemente por assemelharem-se a crianças que esquecem no dia seguinte os fatos acontecidos no anterior. É cômodo não ligar os fatos. É mais fácil viver sem as responsabilidades e consequências advindas das ações perpetradas anteriormente. Só que a dinâmica da vida é outra e nos ligamos feito elos de uma grande corrente a pessoas e a fatos. E sempre há um dia em que tudo vem à tona. Felizes são aqueles que não precisam passar pela experiência dos náufragos nos oceanos das próprias vivências.

Olhei para Fátima Cunha. Quem seria ela na minha vida e por que não me deixou saber do seu amor por mim? As perguntas começaram a aflorar. Sentia que ali uma nova realidade surgia. Esqueci até mesmo que era defunto trafegando por entre os vivos buscando o pouso perdido. Num instante lembrei-me de toda a minha vida extinta, passei pelo túnel das lembranças como viajor à procura de um porto. Eu me sentia por inteiro. Olhei o meu corpo e o vi saudável e forte e um elo prateado soltou-se de mim e me senti livre e leve e respirei profundamente.

– Vamos meu filho. Sua hora soou. Agora sim desligou-se completamente da sua antiga morada de carne. 

Lá no cemitério meu corpo em decomposição devolvia à terra os elementos que animariam outras formações – sublime lição da natureza, mostrando que nada se perde.

– Somente a força do amor nos liberta!

De fato, eu havia procurado em tudo e em todos a explicação da minha vida e a extinção da mesma e só me deparava com pessoas infelizes cometendo infelicidades. Quanto mais perpassava por elas mais sentia asfixiado. Buscar Fátima da Cunha era minha última esperança. Aquela lágrima cálida que caiu em minhas mãos no instante das minhas despedidas daquela existência fez-me procurá-la e, na procura encontrei o Mestre Nuar, um espírito benfeitor, por intermédio do qual encontrei o amor em muitas dimensões. Encontrei o amor de filho, de pai, de criatura, de Jesus, de amigo e reencontrei o amor de Fátima Cunha, alma a quem estou ligado por laços de grande afinidade, da qual me distanciei perdido nos vales de minhas antigas intemperanças.  Ah quase sempre cavamos vales profundos em estradas nas quais deveríamos trilhar com galhardia. Hoje aguardo seu retorno ao plano espiritual. Retomaremos nosso plano de voo rumo a Deus que nos criou para seguirmos até o momento da sublimação das nossas almas. E lá, no cemitério, ficaram e ficarão aqueles até quando insistirem por transgredir as leis justas, sábias e sublimes daquele a quem necessitamos adorar como o Senhor de todos os reinos, de todo o poder e de toda a glória por tudo o sempre. Uma lágrima, apenas uma lágrima de sinceridade no instante oportuno me fez recuperar a visão, a vida e vislumbrar o amor na essência da sua pureza a que posso penetrar.

Todas aquelas reflexões passavam em minha cabeça. Fátima da Cunha sorria e eu a observava. Estava buscando o calor da amizade, dos afetos mais profundos, de algo que me desse sentido de continuidades. Eu estava na morte e ela, a morte, absolutamente não estava em mim. Era coisa estranha, coisa nova, verdade que abria suas portas lenta e generosa para minha alma que inda trafegava pelos vales da ignorância espiritual. Aproximei-me daquela dama. Toquei de leve suas mãos, olhei seu peito em cujo interior pulsava um coração. Ele batia com tenacidade, cumprindo seu dever de manter vivo aquele corpo esbelto e quase ainda primaveril. Fátima da Cunha era uma mulher de beleza delicada. Não aquelas belezas que encantam por um tempo, na fase juvenil e depois se escondem em rugas e estrias precoces. Ela se conservava bela, tais como as flores silvestres que enfeitam campos com suas harmonias insólitas, com suas propostas silenciosas de dar néctar aos seres dos campos. Sua pele era suave e sua tez morena clara. Cabelos longos, sedosos, à altura dos ombros e olhos pequenos que bem sabiam onde fixar. Que bem sabiam onde se encontravam as grandezas, que bem sabiam buscar o que de fato enriquece a alma. Ela me sorriu. Ela me via. Respirou fundo e pensou:

– Ah meu amor!...

Havia dito tudo, numa pequena frase. Olhei para ela. Agora a lágrima que soltou foi a minha. Vi que na morte também choramos pelos vivos. A vida nos colocava assim, mortos e vivos, amando com profundidades. Romance estranho que se escreve com tintas estranhas. Cálidas percepções que não se trocam pelas vias normais das falas e das respostas. Mais tarde Nuar me disse que mortos e vivos se comunicam e trocam impressões continuamente. Olhei Fátima da Cunha e ela pensava. Viu-me quando estava apenas com sete anos e eu com aproximados vinte e três. Foi num dia de folguedos em honra a Nossa Senhora de Fátima, padroeira daquela comunidade, daquele povo que fora ali reunido pelas potências divinas para juntos aprenderem as regras das Leis de Deus. Sim, as comunidades são constituídas para este fim. Eu andava em busca de um afeto. Olhava para Nazira, moça um pouco elegante e um pouco desfeita pelas cicatrizes que trazia no rosto, fruto de um acidente. Nazira era a prepotência em pessoa, a soberba que passava por todos destilando antipatias. Mas, por incrível que pareça, os antipáticos também são filhos de Deus e possuem suas graças. Nazira me olhava, media minhas possibilidades financeiras, meus aparatos do vestuário e se ia em busca de propostas melhores, resquício de seu comportamento em eras primitivas quando, na condição de fêmea, instintivamente, buscava o melhor macho para ser o pai da sua prole. Coisas dos instintos, da irracionalidade, mas que perdura muito tempo após termos adquirido a razão. Fátima da Cunha, menina pura, olhava-me à distância, eu lia isto em seus pensamentos. O pior é que não conseguia me lembrar também. Não sei se por conta da morte ou por conta das minhas parcas lembranças de quando era jovem. Mas, vi ali que nossos verdadeiros amores nos buscam independente de quem somos, onde estamos e como estamos.

Vi depois naqueles pensamentos que ela crescera e se tornara bela jovem. Seu pai entendeu que deveria casar-se com Armando Cunha, fazendeiro e que certamente a daria a felicidade merecida. Sua mente deixou escapar a imagem de quando me olhou uma última vez antes de assumir o compromisso que lhe era imposto. Foi num momento de luto. Dona Arminda da Silva, matrona daquela comunidade, estava morta. Aproximei-me do seu corpo para uma última oração. Fátima da Cunha aproximou-se igualmente. Foi aí que a vi. Que a senti. Que tive enorme vontade de tocar suas mãos. Ela me olhou e deve ter dito com seu olhar:

– Que pena meu amor. Agora é tarde demais.

Interessante, eu só me encontrava com ela em momentos decisivos da morte!

Não a esquecia, mas também não a idolatrava. Por isto o meu susto quando ela depositou sua lágrima cálida no meu corpo sem vida. Agora estávamos livres, contudo, eu morto e ela viva! Ou ambos vivos? Em meio àqueles fluxos de pensamentos percebi que as mãos generosas de Nuar tocaram meus ombros. Virei-me, olhando-o. Então me disse:

– Quer entender sobre a vida e a morte?

– Sim. Gostaria. Tenho mesmo que vencer meus medos da morte.

– Então venha. Enquanto aguarda Fátima da Cunha vamos para uma colônia que bem nos ensina sobre este tema. Precioso tema que precisa ser lido e estudado para que as pessoas sejam mais bem preparadas para o instante fatal do desencarne!

– Desencarne?!... Perguntei. Ele sorriu e me disse:

– Sim. É um novo nome da morte. É mais ameno e mais real.

– Desencarne...

– Sim. Deixar a carne!

– Interessante, falei.

– Então vamos? A Casa dos Sonhos nos aguarda. Falou-me.

– Casa dos Sonhos? O que vem a ser isto?

– É o nome da Colônia Espiritual para qual estou convidando você a ir e conhecer...

Foi então que descobri que existiam comunidades formadas por espíritos mortos, ou melhor: desencarnados!

Despedi-me de Fátima da Cunha. Mas, só por algum tempo, e lá fui eu para a colônia dos mortos, dos vivos, dos desencarnados... Sei lá, eu era tudo aquilo! (*)
 

(*) Conto escrito por inspiração mediúnica do Espírito Elias.



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