A história que escrevi - Guaraci Silveira

– Eu precisava me livrar daquele passado espúrio. Estava mesmo decidido a fazê-lo. Tinha quarenta e cinco anos quando fui procurar uma vidente muito famosa da minha cidade. Marquei a consulta entendi que pagar era justo. Afinal, aquela mulher vivia para atender as pessoas e tinha que alimentar sua família. O marido não suportou o enxame de pessoas na sua casa e achou melhor procurar outro rumo. Mudou-se para muito longe dali e os filhos ficaram sob a guarda daquela mulher que não teria o que comer e vestir não fossem as consultas que dava. Não entendia muito bem de justiças quanto a casos semelhantes a esse. No fundo tinha muita curiosidade em conhecê-la. Eu havia nascido em família católica. Minha mãe, descendente de portugueses, era devota fervorosa: respeitava os rituais, participava das procissões, das novenas, ladainhas e tudo mais. Não a julgava por isso. Quando criança aceitava de bom grado tudo aquilo, porém, com a chegada da adolescência, fui tomando outros rumos, me distanciei daquela crença. E assim alcancei a idade adulta, indiferente àquilo tudo. Um dia me tornei empresário de destacada importância. Ir ao encontro daquela vidente era algo inovador na minha vida. Será que ela de fato veria meu passado e desvendaria meu futuro?

Tenório, o conferencista espiritual, não permitia interrupções em sua fala. Olhei Luana como a dizer isto a ela. Ajeitamo-nos para melhor ouvi-lo e ele suspirou fundo e continuou sua narrativa. Há pessoas que falam de si para estranhos com tanta naturalidade!

– No dia e hora acertados lá estava eu. Preferi ir à noite por causa das visibilidades sociais. Recebeu-me com gentilezas, paguei antecipadamente o valor exigido. Assentei-me numa poltrona desgastada pelo tempo e ela se postou à minha frente, vestindo-se normalmente, sem nenhum aparato místico. Aquilo de certa forma deu-me confiança. Iria conversar com uma pessoa normal que tinha os pés no chão, quase uma conselheira. Existem aqueles que gostam dos aparatos cabalísticos, tudo bem, nada contra. Apenas eu prefiro que seja com naturalidade. Aquela senhora olhou-me e vi que seu rosto se transformou. Já não era mais aquela que me atendeu, era outra, vinda de algum lugar de um passado que começou a aflorar em mim. Eu a olhava e sentia-me transportar para a essência do que ela representava.

– Que bom que nos reencontramos. Disse-me com voz quase conhecida por mim. Olhei para ela. Não entendia nada sobre transfigurações, apenas ouvi o padre dizer uma vez que Jesus havia se transfigurado num morro muito alto. Nunca procurei estudar essa matéria. E a mulher prosseguiu, fixando-me o olhar:

– Veja, reencarnei. Agora estou neste corpo e meu nome é Valéria.

– Sim, Valéria era o nome da vidente. E ela continuou:

– Eu tenho passado por muitas dificuldades desde o dia em que troquei a paz pela luxúria, o certo pelo duvidoso, a luz pelas trevas. Pensa que faço certo em cobrar as consultas? Não. Não faço. Estou cobrando por aquilo que recebo de graça, mas se não cobrar morremos de fome eu e meus filhos. Quando vivíamos juntos na aldeia você foi o meu amparo. Verdade que tinha lá o seu preço, mas eu gostava de pagar na moeda que me exigia, entendeu? Podia assim atender as pessoas na minha cabana e elas saíam satisfeitas e muito agradecidas. Depois você foi embora. Resolveu ficar rico. Deixou-me algum recurso, mas que não deu para eu chegar até o final da vida. Então desandei meu trabalho e fiz coisas que não deveria fazer. Não estou culpando você. Enquanto viveu perto de mim, pude fazer tudo direitinho como manda as regras. E agora você apareceu de novo. Foi Deus quem o mandou aqui ou foi a saudade que doeu no seu coração?

Havia naquele homem um quê de perturbação que não nos deixava muito confortáveis. Ele falava, gesticulava, dava de braços e mãos, deixando transparecer que viajava na sua própria história vivendo-as novamente. Falava muito rápido, às vezes muito alto, às vezes muito baixo e tínhamos que ser bons ouvintes para entender cada frase se, de fato, quiséssemos aproveitar sua experiência como ensinamentos. Luana me olhava um tanto aflita. Era o primeiro relato que ouvia. Eu tentava acalmá-la fazendo leves gestos com a mão como a solicitar-lhe calma. E o Tenório deu um salto da cadeira e disse como que se defendendo em um tribunal:

– Não... Não sabia o que responder. Nunca havia visto aquela senhora na minha vida. Fui ali em busca de orientações e ela me contou uma história que eu desconhecia e que nada tinha a ver comigo, com minhas perguntas e necessidades. Tive vontade de sair e ir embora. Aquilo tudo era loucura, enganos, armadilhas. E eu estava me envolvendo. Sempre tive que ter muito cuidado nas minhas atividades profissionais. Espertalhões não faltam para tentar enganar e lesar os incautos. Estava vacinado contra as más ações dos outros. Mas ela insistia e me disse:

– Você se arma em defesas contra os outros e não percebe as garras que tem nas mãos...

Tenório nos olhou, aproximou-se de Luana e disse:

– E ela falou quase que sussurrando como fazem as mulheres choramingas quando desejam enganar os homens. E disse mais:

– Você mudou muito. Antes era moço bom, agora é ganancioso e fanático por dinheiro e poder. O que deu em você para mudar tanto assim?

– Verdade que eu era adepto da fortuna e do poder. Mas sempre fui assim. Eu não havia mudado. Desde criança levava vantagem nas trocas de figurinhas, de brinquedos, de frutas. Desde criança negociava com meu pai o valor do meu trabalho infantil e até boas notas que tirava no colégio. Não havia mudado em nada. Aos quarenta e cinco anos tinha razoável fortuna, construída desde os quinze quando comecei a vender caldo de cana na praia. Estava me justificando e ela rebateu:

– Você não está entendendo. Não estou falando só desta existência. Estou falando das outras encarnações. Você era justo e leal. Aceitava só o que merecia e tinha só uma mulher. E agora? 

– Bem, comecei a estremecer. Eu não me importava muito com justiça nos negócios, na verdade eu aproveitava da fragilidade dos outros, dos apertos financeiros das pessoas que vendiam suas casas ou terrenos por preços muito baixos, da supervalorização dos meus imóveis e produtos e uma série de outros procedimentos que me fizeram ficar rico. Quanto a uma única mulher, nem cogitava tal possibilidade. Tinha várias. Usava-as quando e como desejasse. Tinha aquela que era a mãe dos meus filhos, a ela dava conforto e luxo. Entendia que era o bastante. E aquela conversa foi se esticando. A vidente então falou:

– Pois é, meu filho. Os anos estão passando e você nem percebe que vai morrer um dia. Também eu vou morrer um dia e isto tem sido o meu grande pesar: o que vou dizer para os amigos lá de cima quando voltar para eles. Que contas vou prestar da minha mediunidade? Eu cobro por ela. Não consigo parar de cobrar. Veja, não tenho nada aqui de valor a não ser meus três filhos que estão estudando em escola particular. Quero que eles tenham tudo o que eu não tive. Estou trocando meus tormentos do futuro pela felicidade deles...

–Eu não entendia nada daquilo e pensei comigo: será que tem que ser assim mesmo? Subjugarmo-nos a infelicidades futuras para que nossos filhos sejam felizes? Nunca faria isto. Comecei quase sozinho trabalhando de sol a sol na praia vendendo caldo de cana. Eles que fizessem o mesmo. Filho cresce e vai embora e nem liga pra gente. Mônica estava com dezoito. Uma vez por semana ligava para casa para dizer onde estava. Milena vivia ao telefone com o namorado e Augusto era homossexual e só se interessava pelos amigos que também eram homossexuais. Nunca recriminei ninguém, mas também nunca me sacrificaria por eles.

Tenório interrompeu a narrativa, como se revirasse a memória. Por minha vez, considerava que nem de longe supomos o que vamos encontrar nos relatos dos desencarnados. São histórias e mais histórias, quase sempre super valorizadas pelos seus contadores, mormente quando estão em defesas pessoais, principalmente quando o fazem em defesas pessoais. Tenório tinha fala retumbante e queria safar da situação em que se encontrava gritando e gesticulando tal qual fazia quando estava ainda na carne. E ele nem sabia que no mundo espiritual não se consegue enganar a ninguém. Deixamos que ele continuasse sua narrativa. Estávamos curiosos para ver o final daquela história de mandos e desmandos. Tenório prosseguiu:

– Sempre chega o dia do ajuste de contas. A morte é a niveladora da vida. No dia em que morremos começamos a receber nossas fichas do bem e do mal. Felizes são aqueles que tem mais fichas do bem. Eu já me entreguei. Minhas fichas do mal são bem maiores. E você? Perguntou-me aquela vidente. Então eu comecei a pensar no assunto. E comecei a concluir que se fosse aquele o balanço final da vida eu estava perdido. Se somasse toda a minha fortuna e subtraísse todos os golpes para formá-la, multiplicasse esses golpes pelas tristezas das minhas vítimas e dividisse minhas preocupações com o medo de ficar pobre, certamente ficaria arruinado. Eu era um dragão do mundo dos negócios: dava falsa aparência a pedras comuns transformando-as em falsos ouros para vendê-las a preços altos. Isto é o que era. Isto é a verdade. Mas tantos fazem assim. No mundo dos negócios estas ações são tão normais...

– Pense na morte – continuou a vidente – ela chega de repente. Pode ser hoje ainda ou amanhã mesmo. Ando pedindo perdão a Deus e já dou algumas consultas de graça para aqueles que não podem pagar e eles sempre me trazem alguma coisa para comer ou vestir. Ainda vou viver mais um pouco e quando as crianças forem para a faculdade, vou trocar o dinheiro pelo alimento e a roupa. Assim vou purgar um pouco os meus pecados aqui mesmo na terra.

Tenório olhou-nos com mais profundidade talvez nos buscando para cúmplices das suas razões. Para nós, não era o caso. Quando em pesquisas não devemos nos envolver emocionalmente com o fato observado e sim postar-nos como coletores de dados.  Apenas isso. Foi o que eu e Luana conversamos antes de chagarmos até aquele homem tenaz, de história cumprida e infeliz. Éramos pesquisadores na espiritualidade, ouvíamos casos e os catalogava-os para nossos entendimentos e ajustes e também passá-los para os encarnados ou desencarnados. Ele continuou:

– Aquela conversa com a vidente estava me entediando. Até aquele momento ela não havia dito nada de concreto. Fui ali na esperança de ouvir um conselho para mudar minha maneira de agir e de consertar uns pequenos erros que me atormentavam. Como, por exemplo, o assalto que planejei num banco e que deu errado. Dois dos assaltantes foram presos e dois morreram no tiroteio com a polícia. E ainda o sequestro da filha do meu concorrente. A pirralha de dez anos acabou se matando no cativeiro e não pude fazer a chantagem que desejava. Aquilo, porém atormentava minha cabeça e sempre ouvia os choros daqueles mortos e os constantes pedidos de dinheiro por parte das famílias dos presos. Queria me libertar daquilo. Queria que os mortos voltassem para suas tumbas e que as famílias dos presos se dessem por satisfeitas. Afinal dava a elas metade do salário-mínimo todo mês. Apesar da minha mente sempre planejar assaltos e sequestros, eu não queria mais me envolver com aquilo. Por isto estava em frente àquela vidente. Queria que ela me desse a fórmula correta de pensar só no dinheiro ganho nos negócios.

Tenório nos levantou dos nossos assentos. Tomou nossas mãos, apertando-as da mesma forma que apertava seus olhos esgazeados e nos disse como vítima:

– Sabem o que ela me disse? Em breve pedirão sua alma! Aquilo foi o bastante. Sai dali enfurecido. Aquela infeliz estava dizendo que eu teria que entregar minha alma, mas a quem? Ao diabo? A Deus? Peguei o carro e fui para casa. Entrei como sempre: com raiva, com nojo, mal humorado e infeliz. Fui para o quarto de hóspedes e lá fiquei. No dia seguinte levantei-me cedo e fui trabalhar. Fechei vários negócios altamente lucrativos com pessoas falidas, emprestei altas somas de dinheiro com juros alarmantes e ainda cobicei a mulher do próximo que, coitado, quase a vendeu para mim para pagar suas contas bancárias. Eu usava várias máscaras faciais. Era mestre em criá-las e utilizá-las. Era sorridente, preocupado, pensativo, cortês, severo, irredutível e benevolente. Tudo na hora certa, com a precisão do falcão que alça voo em direção à sua presa. Sim, eu era quase invencível. Dificilmente não lucrava muito nos negócios e dificilmente não tinha o que desejava. Sexo, dinheiro, poder, álcool, fumo e rock. Estes eram os ingredientes da minha vida. Era refinado galã e tinha que me esconder das top model que insistiam por me conhecer e beber comigo num bar ou no carro.

Tenório parou de falar e observou nossa reação. Histórias e mais histórias. O mundo espiritual está cheio delas. Histórias de fanfarrões bestializados com seus próprios atos e que, de repente, se desnudam quais crianças inconsequentes pedindo abrigo, arrimo, socorro. Este era o Tenório, um pobre náufrago, vagando em si mesmo. Busquei ser forte e transmitir fortaleza ao coração sensível da minha amiga Luana que quase estremecia. Éramos servidores de uma causa justa e deveríamos ser leais a ela, por isso permitimos que Tenório continuasse sua fala:

– Três anos depois voltei à casa da vidente. Ela havia se mudado. Disseram-me que seus filhos estudavam na faculdade e que ela tomava conta de uma senhora idosa. Havia encerrado suas funções mediúnicas de atendimento ao público. Que pena! Na verdade, tinha ido ali para ensiná-la como fazer para se enriquecer com suas práticas mediúnicas, como dizia. Existem pessoas que se contentam com pouco e outras, como eu, não conseguem ser felizes arrastando-se nas partes medianas da pirâmide social. Um dia fiquei doente. Uma dorzinha de nada surgiu na região torácica. Fui ao médico e aos exames. Confirmado. Tinha câncer nas vias respiratórias. Pesquisei o caso e vi que os doentes daquele mal terminavam suas vidas em plena agonia. Marquei consultas com médicos da Europa, dos Estados Unidos e até da Ásia. Fui a todos eles. Gastei uma fortuna com viagens, hospedagens, consultas, internamentos e remédios. Também deixei de ganhar dinheiro porque enquanto viajava não trabalhava. Selton e Taila eram meus empregados de confiança. Taila era quase minha segunda esposa. Os dois sabiam alguns segredos dos meus cofres e senhas. Aproveitaram minha ausência e roubaram do ladrão na expectativa de receberem um dia o perdão. Aquilo foi desastroso para mim e minha saúde. Os cofres esvaziavam, as contas aumentavam, a dor era constante e os remédios não faziam efeito. Os filhos cobravam a herança, a minha mulher era fútil não queria se envolver e comecei a viver uma realidade absurda. Corria o risco de morrer pobre.

Tenório parecia reviver o mesmo sofrimento que enfrentara diante da aproximação da desencarnação. Considerei o quanto as pessoas reagem dessa forma diante da tal palavra – morte! Fazem dela quase que um refúgio, uma proposta de salvaguarda dos seus atos bons ou não. Poucos a estudam com profundidade e por isso ainda tantos a cultuam. A morte é um momento extremo, singular em nossas existências. Mas não é o fim. Definitivamente não o é. Assim como também não é o descanso eterno. A imagem do cadáver solitário e dormindo no ataúde não quer dizer que o espírito esteja morto. Ainda ali a absurda fixação à forma. Se a forma está dormindo placidamente, então a morte é o descanso. Parca e esdrúxula conclusão. E assim os anos, os séculos passam e a humanidade continua enaltece o toque do silêncio formal ou não, enquanto o espírito necessita outras ações daqueles que ficam para que ele possa caminhar seguro para as regiões onde necessita ir. Voltando ao Tenório eis o que narrou do seu instante final e fatal naquele corpo de carne:

– Num dia frio de julho, asfixiado e anestesiado por narcóticos de alto poder deixei aquele corpo numa clínica comum da minha cidade. Estava morto. A morte, contudo, não me devolveu a saúde. Continuava asfixiado e gemendo de dor. Rolava pelo chão pedindo a côdea de um só instante de paz. As pessoas passavam e nem olhavam para o mendigo estirado na via pública. Os médicos transitavam felizes pela calçada comentando sobre novas descobertas e avanços da medicina e lá estava eu, barbudo, sujo, maltrapilho, estirado como lagarto semimorto nas vias publica da minha cidade. E tudo era dor, era ferida, era indiferença. Pensei nos meus filhos e eles não pensavam em mim. Pensei na minha mulher e ela buscava outro homem rico para continuar sua vida vazia. Pensei em Taila e Selton e eles estavam num cruzeiro pelo caribe, bebendo e sorrindo e debochando da minha morte. Pensei, enfim, na vidente. Eu a vi arrastando sua pesada cruz, porém com garra e na certeza que venceria. Ouvi suas preces, seus rogos de perdão e via seres de luz à sua volta, fortalecendo seus passos. Ela errou, eu errei. Nossos erros nos levaram a fracassar em várias existências. Ela se recuperava, eu me afundava na lama. Ela era a humildade, eu o orgulho. Anos depois fui recolhido a uma espécie de albergue e tive que dividir com miseráveis o leito, o caldo, as tristezas e a dor. Nem mesmo os espíritos do mal me queriam. Era imprestável para seus serviços e eu poderia lhes ser muito útil dado à minha inteligência e perspicácia para iludir e aliciar pessoas. Mas, agora entendo que sempre tem um momento em que a providência divina olha para nós, para nossas misérias e se compadece. Maria Furtado, antiga empregada da casa do meu pai, desencarnada, me visitou naquele albergue sujo e mal cheiroso e me disse:

– Já não é hora de mudar, Tenório? As dores não foram ainda suficientes? Até onde deseja chegar?

– Não respondi. O orgulho não deixou. Quem era ela para me dar lições? Ela que se portasse no seu canto de empregada. Um dia o comboio passou. Ele resgatava miseráveis para clínicas de recuperação que ficavam bem longe da cidade, daquele local imundo, daquelas pessoas asquerosas, enfim, de tudo. Chamaram-me. Como não respondi deram o meu silêncio como “sim” e lá fui eu para o desconhecido.

Tenório limpou suas lágrimas. Suas lembranças agora seriam a do arrependimento que fatalmente nos chega quando nos damos conta de que somos ainda deuses bem pequenos:

– Nem imaginam o que passei comigo mesmo. Cada dia, cada afeto, cada carinho dos enfermeiros e enfermeiras eram como agulhas da vergonha e do arrependimento penetrando meu ser, no mais profundo da sua intimidade. Quantas moças e mulheres bonitas passavam no meu leito, no meu quarto, na minha varanda, no meu nicho de orações. Elas transmitiam segurança, honestidade, dignidade. Meus olhos nublados começaram a se abrir para outras realidades. Lá no passado, o abismo. Lá no futuro os cumes iluminados e aqui no presente uma pobre alma que se reconstrói após torpes e insanas atitudes que alimentam a vã filosofia do ter em detrimento ao ser. Quero ser uma alma feliz. A morte me apareceu na hora que menos esperava por ela. Não me cuidei, não me preparei e escrevi nas telas das minhas memórias páginas tristes de tristes dias que vivi. Agora é o momento de recomeçar, reflorestar, fazer novo plantio. É o que vou fazer. É o que desejo que todos façam se em algum trecho suas histórias assemelharem-se com a minha.

Estava cansado o nosso amigo Tenório. Necessitava repouso. Uma enfermeira amiga o convidou ao descanso, levando-o. Olhei Luana que segurava aos custos uma lágrima de compulsão. Olhei-a e pensei:

– Luana também tem sua história. Será que um dia me contará? Saímos dali. Era hora de retornar, buscar novas informações, Era hora de retornar, ir em busca de outros depoimentos, dar continuidade ao meu livro. Sentia-me esperançoso de que o meu modesto trabalho ajudasse, um dia, a ilustrar consciências e libertar os leitores da falsa ideia da morte e desta terrível ilusão do ter que alimentam dias vazios e vadios que muitos teimam por querer para si. (*)
 

(*) Este conto foi mediunicamente inspirado a Guaraci de Lima Silveira, que reside em Juiz de Fora, MG.



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