A barraquinha - Marcus V. de A. Braga
Esse artigo começa com uma história fictícia, e qualquer semelhança com o real é mera coincidência. Na cidade de Pantanal do Norte havia na praça central uma pequena barraquinha, que vendia livros espíritas, sendo mantida pelas casas da região, com revezamento de seus frequentadores no atendimento, já sendo um clássico local de busca daquela obra específica, em um tempo que antecede as compras on-line e outras modernidades.
O novo prefeito, senhor Epaminondas, se elegeu com forte apoio de segmentos religiosos que, por questões diversas, viam no Espiritismo uma ameaça a sua fé, e ao assumir o cargo, foi pressionado pela sua base eleitoral a retaliar os espíritas, impondo dificuldades ao seu exercício religioso, o que culminou com a cassação do alvará da modesta barraquinha que funcionava na praça central da cidade.
Tal perseguição, apesar de não ser a primeira ou a última que os espíritas sofrerão no Brasil, com um histórico de serem fichados na polícia em tempos de outrora, causou indignação na numerosa comunidade de espíritas daquele município, o que levou a convocação de uma reunião dos frequentadores das diversas casas para tratar do tema, mediados pela presença do Sr. Armando, procurador aposentado que vivia em Pantanal do Norte e que frequentava as atividades doutrinárias.
No dia da reunião, os ânimos estavam exaltados, e o clima era de revolta. O primeiro a falar foi o Sr. Menelau, diretor de divulgação da União Espírita de Pantanal do Norte, setor responsável pela gestão da barraquinha. E não se fez de rogado. Narrou outros eventos de perseguição religiosa no município, envolvendo também a participação das casas espíritas nos trabalhos assistenciais, bem como notificações por perturbação da ordem em função das reuniões públicas. O público, boquiaberto com aquele cenário, inicia aquele habitual murmurinho, e Menelau, tomado pela situação, propõe que seja lançado um candidato a vereador dos espíritas, para defender os seus interesses junto a municipalidade.
Aplausos efusivos. Sr. Armando, com seus cabelos grisalhos, pede a palavra, em meio ao um coro que se ensaia para lançar Menelau como candidato, por aclamação. Cumprimentando a todos, com a voz calma, Armando começa a sua argumentação: “-Estimados, certamente é deplorável em pleno Século XXI sermos objeto de perseguição religiosa em nossa cidade. Vi no jornal ontem que um templo de matriz africana teve a sua sede depredada ontem na nossa capital, e tudo isso nos entristece, e é respeitável esse desejo de responder nas mesmas armas.” O público aplaude efusivamente.
Armando, entretanto, leva o assunto para outra direção. “Prezados, imaginem se todas as religiões necessitassem se vincular a política para ter seu direito à livre prática? As denominações mais numerosas se sobreporiam nessa arena, retaliando as outras da mesma forma? Um dos princípios da democracia é a laicidade do Estado, que se traduz, entre outras coisas, na garantia da liberdade de crença e de culto dentro dos limites das leis comuns e da ordem pública. Somente a liberdade de todos garantirá a liberdade de cada um. Devemos procurar as autoridades que defendem o cumprimento da Lei, como o Ministério Público, para garantir a nossa liberdade de exercer a fé espírita, como um direito comum a todos nós, cidadãos, e que não pode ser condicionado a uma representação político-partidária e ao alistamento em uma batalha eleitoral.”
Depois dessa preleção do Sr. Armando, aí é que o caldo da reunião entornou e ninguém mais se entendeu. Entre laicos e partidários, a discussão avançou horas a fio sem encontrar uma pactuação. Muitos queriam não só um, mas dois vereadores espíritas. Propuseram passeatas, colocar outdoor de protesto, fazer abaixo assinado para proibir a lojinha que também vendia outros livros religiosos na praça do Arco. A coisa desandou e faz mais de ano, desde a famigerada reunião, que a barraquinha está desativada.
Essa história, fictícia, mas possível de ser verdadeira em diversas cidades do Brasil e do mundo, é uma reflexão sobre espaços que nós espíritas conquistamos de livre exercício religioso ao longo do Século XXI, mesmo sendo minoritários numericamente, e das diversas perseguições que nós e outros irmãos sofremos no exercício de nossa fé.
Uma reflexão não sobre as armas que nos cabem nessa batalha, mas sobre em que espécie de luta devemos adotar nessas situações, pois mesmo que se consiga vitórias em um plano político hoje, ela pode converter perseguidos em opressores amanhã, deixando de se enxergar como alvo a ser atingido o respeito pela prática religiosa e pela convicção pessoal.
A religião é motivo de guerras pelo mundo e nas páginas da história. Uma trajetória de perseguições, de relações desastrosas entre os poderes de César e os seguidores de Deus. E nós, espíritas, cedo participamos dessa história com 300 obras queimadas em praça pública na Barcelona de 1861.
O Espiritismo surge com propostas diferentes nesse sentido, com visões tais como “Fora da caridade, não há salvação”, de diálogo e respeito, que lhe permitiram navegar ao longo do Século XX cumprindo seu desiderato, entendendo que ele pode ter seu espaço na sociedade sem precisar ocupar espaços na condução política desta.
Excelente artigo. Parabéns!