Cestas básicas, política e promoção social - Marcelo Teixeira

Continuando a escrever sobre as diversas e graves questões que envolvem a alimentação e a fome em nosso país, retorno à entrevista que o professor Thiago Lima, coordenador do grupo de pesquisa sobre fome e relações sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), concedeu ao Coletivo Espíritas à Esquerda.

É comum e frequente várias instituições religiosas, incluindo os centros espíritas, distribuírem cestas básicas a famílias socialmente carentes. E para que as casas espíritas alcancem um número confortável de doações de gêneros alimentícios por mês, lançam mão de várias iniciativas. Entre elas, divulgação do trabalho em informativos e em reuniões públicas doutrinárias, atividades artísticas em que o ingresso é 1kg de alimento não perecível, campanhas do quilo nas quais os colaboradores do centro vão de casa em casa pedindo mantimentos etc.

É válido os centros espíritas distribuírem cestas básicas? Sim. E muito! Alimentos são sempre bem-vindos. A mesa dos que lutam com dificuldade para conseguir o pão de cada dia agradece.

No entanto, como bem frisa Thiago Lima, apesar de ser uma iniciativa importante, ela não resolve a questão da fome crônica e injusta que assola a nação há décadas e sob diversas formas. Segundo explanado por ele, ao fornecermos cestas básicas de forma constante, não estamos fazendo caridade como de fato ela deveria ser. Em vez disso, estamos enxugando gelo, por incrível que pareça.

Para explicar por que, terei de entrar num terreno em que muitos espíritas não gostam de pisar: o da política. Corre à boca pequena que os espíritas não devem falar de política porque, devido a recomendações de Allan Kardec contidas em um artigo da “Revista Espírita de 1862”, política seria um assunto do qual os espíritas deveriam manter distância.

À época de Kardec, a França estava sob o governo de Napoleão III (sobrinho de Napoleão Bonaparte), primeiro presidente francês eleito por voto direto (1848-1852) e que, por ter sido impedido pelo parlamento a concorrer a um segundo mandato, deu um golpe e governou – ou melhor, reinou – como imperador até 1870. Para tanto, contou com o suporte da burguesia, das forças armadas e do clero. Com o intuito de obter apoio também dos trabalhadores, impulsionou a indústria, realizou inúmeras obras públicas, incentivou a agricultura, construiu ferrovias e casas populares, fundou organizações de trabalhadores, entre outras iniciativas. Em contrapartida, limitou a oposição parlamentar e calou a imprensa. Com o passar dos anos, no entanto, os poderes legislativos tornaram a ser ampliados e as liberdades civis foram estendidas.

Foi nesse cenário que a doutrina espírita foi codificada e implementada. Allan Kardec, portanto, tinha de ter o máximo cuidado para que o então movimento espírita nascente não sofresse represálias. Daí a recomendação para que houvesse cautela por parte das sociedades espíritas quando o assunto fosse política. Era algo dirigido aos poucos espíritas da França de meados do Século XIX; um país que estava sob o regime de um liberal autoritário que, em 1870, foi derrotado e partiu para o exílio. Não se tratava de uma recomendação atemporal para ser levada ao pé da letra eternamente pelos espíritas dos séculos vindouros, fossem eles franceses, brasileiros etc.

Como diz o escritor e palestrante Sérgio Aleixo, em uma postagem feita numa rede social, nos escritos de Kardec há o essencial e o acessório. A recomendação do codificador para não falar sobre política é acessória porque está restrita àquele tempo a fim de que fossem evitadas perseguições, cassações de alvarás e similares. Já os ensinamentos espíritas são essenciais e falam também sobre política. Para ilustrar, segue um trecho da resposta à questão 629 de “O Livro dos Espíritos”. Diz ele: “O homem procede bem quando tudo faz pelo bem de todos, porque então cumpre a lei de Deus”. Nada mais político – e divino – do que contribuir para o bem comum, não é mesmo?

Mas o que é política, afinal? Algo que vai muito além das questões governamentais e partidárias e ultrapassa os ministérios, prefeituras, assembleias legislativas e afins que cuidam da política oficial. Ela, aliás, está presente em todas as nossas relações sociais. Afinal, a palavra “política” tem origem no termo grego “politeia”, que significa todos os procedimentos ligados à “polis”, que quer dizer cidade. Partindo desse princípio, uma reunião de condomínio é uma reunião política. Idem uma reunião de pais e professores na escola, um congresso de medicina, as palestras públicas promovidas pelos centros espíritas e por aí vai. Todas, sem exceção, visam melhorar a relação entre as pessoas, a fim de que a vida em sociedade seja benéfica para todos. Viver, portanto, é um ato político, assim como pensar, escolher uma profissão, ter ou não uma religião, poder decidir o que comer etc.

Voltando à distribuição das cestas básicas, o que elas têm a ver com política? Como bem ressalta o Prof. Thiago Lima, nós, habitantes de um país tão rico de recursos, não podemos mais tolerar que haja pessoas sem ter o que comer. Por mais que distribuamos mantimentos, sempre haverá gente submissa à fome. Portanto, fazer como que os centros espíritas contribuam na busca de soluções políticas que acabem de vez com a fome é algo que precisa acontecer.

A cesta básica, do ponto de vista nutricional, é monótona. Contém, geralmente, arroz, feijão, café, óleo, leite em pó, sal, macarrão e açúcar. Dela deveriam constar temperos, frutas, legumes e verduras. Impossível? Talvez não. Afinal, vivemos num país com tecnologia, capital social, solo, terra e água de sobra para zerar a fome. Para que tudo isso seja acionado em benefício de quem passa fome e não precise mais passar, é preciso que sejam tomadas decisões políticas. Entre elas, fazer convênios com a turma das hortas da nossa cidade.

Também é importante ressaltar que a cesta básica comprada em supermercados costuma conter produtos produzidos por latifundiários. Isso significa que, muitas vezes, o arroz que compõe uma cesta que é vendida no Espírito Santo pode ter vindo do Rio Grande do Sul. A quantia despendida nesse transporte teria dado para comprar mais comida, e de um pequeno produtor local. Quando compramos de uma grande rede de supermercados, iremos engordar a conta dos acionistas. Se comprarmos do armazém da esquina, o lucro será revertido para o próprio bairro, fazendo o comércio local prosperar e gerando emprego e renda para os moradores.

Para que a cesta passe de básica a diversificada, fresca e colorida, será necessário diálogo com autoridades municipais e também com os produtores e comerciantes locais. Requererão, ainda, que todas as instituições religiosas, organizações não governamentais e afins que porventura distribuam alimentos não perecíveis participem das discussões que visem mudar para melhor a qualidade do mantimento que é distribuído. Do jeito que ela está, conforme bem observa Thiago Lima, estamos diante de um negacionismo científico. E por quê? Porque não paramos para analisar quem produz os alimentos que integram a cesta básica, de onde eles vêm e quem está ganhando com esse negócio lucrativo. E de tanto executarmos essa função no modo automático, não percebemos que podemos fazer mais e melhor para que a cesta básica tenha mais qualidade e envolva a participação de diversos atores sociais. Um verdadeiro cinturão de solidariedade que beneficiará os socialmente carentes, sensibilizará as autoridades municipais e fará prosperar os negócios dos proprietários das hortas e armazéns da cidade.

No entanto, é preciso dar um passo além: eliminar a necessidade de distribuir cestas básicas de forma periódica. Para tanto, é preciso lutar para que haja justiça social e ninguém esteja em tamanha insegurança alimentar a ponto de receber alimentos todo mês. Para que isso ocorra, a melhor alternativa é aprendermos a fazer política, o que implica participar da elaboração do orçamento da cidade; acompanhar a questão da merenda escolar; cobrar para que haja cada vez mais políticas de inclusão social e de geração de empregos, salários dignos, aposentadorias justas, combate à fome e à pobreza... Enfim, entrarmos no campo do debate para ajudarmos pessoas que nem conhecemos e, por conseguinte, mudarmos para melhor a forma como a política é praticada no Brasil. Um longo e tortuoso caminho que precisa ser percorrido caso queiramos um planeta de fato regenerado. Isso significa amor ao próximo.

Por essa razão, distribuir cestas básicas, por mais louvável que seja, não resolve a situação de vulnerabilidade social dos que dela dependem. O melhor a fazer é tomarmos atitudes políticas para que ninguém mais precise de cestas básicas e possa ter a garantia de uma despensa farta. Isso inclui votar em pessoas comprometidas com o bem-estar social de todos e não nos corruptos, boçais e oportunistas de ocasião.

No livro “Espiritismo e justiça social”, o professor Luiz Gonzaga Pinheiro chama atenção para o fato de muitos espíritas – os ortodoxos, segundo ele – passarem ao largo do assunto política como se ele fosse algo profano, pronto a ameaçar o ambiente com vibrações malsãs. Só que a doutrina espírita, nas palavras do próprio autor, não existe unicamente para tratar de assuntos transcendentais. Diz ele: “O ser humano é eminentemente político, e a sua omissão é um fato político (sim, político!) que desfavorece o progresso material e moral de uma sociedade.”

Creio que também há uma grande confusão quando se toca no assunto política. Geralmente, acreditamos se tratar de eleições, partidos políticos, candidatos e não da vida na cidade, como anteriormente explicado. Os movimentos religiosos devem ser apartidários, ou seja, não tomarem partido dessa ou daquela legenda. No entanto, não devem ser apolíticos. Nem podem. Se insistirem, estão abrindo mão de um importante meio de implantar justiça social. Daí para se limitarem à eterna distribuição das cestas básicas e passarem ao largo das reais necessidades alimentícias e econômicas da comunidade é um pulo.

O papa Pio XI, que esteve à frente da Igreja Católica de 1922 a 1939, dizia que a política é a forma mais perfeita da caridade. Fala essa que foi repetida por dois de seus sucessores: Paulo VI e Francisco, atualmente no cargo. Como profitentes de uma doutrina que prima pelo aprimoramento moral do ser humano, devemos ter em mente que a política é a arte de tornar cada vez melhor a vida em comum, garantindo melhores condições de subsistência a todos.

É público e notório que o sistema político brasileiro vem de um histórico de arbitrariedades e erros crassos, que resultaram em desesperança, indignação, revolta e afastaram o cidadão das decisões políticas. Isso serviu para que os maus políticos profissionais fizessem a festa, causando ainda mais repulsa por parte da sociedade. No entanto, quanto mais nos distanciarmos do debate político, mais esse quadro se agravará. É preciso marcar presença na construção de política que vise ao bem de todas as pessoas, e com ampla participação popular. Muitas benesses passarão a ser colhidas a partir daí. Entre elas, uma cesta pra lá de básica, que trará saúde, bem-estar e prosperidade, mas que, com o tempo, poderá deixar de existir, já que uma política feita por todos e para todos resultará numa vida abundante de recursos, sem necessidade de assistencialismo.

O caminho é fazer com que a vida na “polis” seja infinitamente mais plena para todos, sem distinção de raça, credo ou classe social. É tomar a defesa do fraco contra o forte e sacrificar interesses pessoais para que a justiça seja soberana, como bem explicita Allan Kardec no item 3 (O homem de bem) do capítulo XVII de “O Evangelho segundo o Espiritismo”. 


Bibliografia:

  1. ESPÍRITAS À ESQUERDA – Espiritismo e combate à fome. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EgGfQr95sXU
  2. FRANCISCO, Felipe Magalhães – A política como forma mais perfeita da caridade, Revista Dom Total. Disponível em: https://domtotal.com/noticia/1076008/2016/09/a-politica-como-forma-mais-perfeita-da-caridade/
  3. KARDEC, Allan – O Evangelho segundo o Espiritismo, Federação Espírita Brasileira (FEB), 2ª edição, 2018, Brasília, DF.
  4. _____________ – O livro dos espíritos, Federação Espírita Brasileira (FEB), 60ª edição, 1984, Brasília, DF.
  5. _____________ – Revista Espírita – 1862, Federação Espírita Brasileira (FEB), 1ª edição, 2004, Brasília, DF.
  6. PINHEIRO, Luiz Gonzaga – Espiritismo e justiça social, Editora EME, 2ª edição, 2004, Capivari, SP.

SOBRE NAPOLEÃO III – https://pt.wikipedia.org/wiki/Napole%C3%A3o_III_de_Fran%C3%A7a



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